sexta-feira, setembro 28, 2007

Adorno e o plugging


Era difícil ser um intelectual alemão nos anos 30. O Instituto para a Pesquisa Social, fundado em 1924 nos domínios da também recém-criada universidade de Frankfurt, nem chegara a completar uma década de atividade quando Hitler ascendeu ao poder e ordenou que seus capangas da Gestapo fechassem todos os focos de resistência ao governo nazista. Com a chapa mais quente que o solo senegalês, pensadores germânicos, marxistas e judeus como Horkheimer e Adorno tiveram que se pirulitar da terrinha, e aportaram nos EUA – aquele em 1934 e este em 1938 – para dar continuidade aos seus trabalhos.



Foi no território ianque que Adorno tomou conhecimento de uma cultura organizada em bases industriais – até então, ele ignorava “em que medida o planejamento racional e a padronização impregnavam os chamados meios de massa” (palavras do próprio). Visivelmente bolado com o caráter manipulatório e opressor do que chamou de indústria cultural - termo que se popularizaria amplamente nas décadas seguintes -, Adorno se tornou um de seus mais mordazes críticos. Seu primeiro artigo em terras americanas possui um título forte e auto-explicativo: Sobre o caráter de fetichismo e a regressão na audição.



Ater-me-ei, todavia, a um mecanismo que o autor descreve em On Popular Music, escrito ainda no final dos anos 30. Trata-se do plugging, que seria, segundo Rodrigo Duarte, a “repetição ad nauseam pelos meios de comunicação (no caso, o rádio) de uma canção, até que o público goste dela, independentemente de ela ter qualidades musicais ou não”. Esse mecanismo seria fruto de uma acordo entre as principais agências interessadas na difusão e consumo de um produto musical, ou seja, gravadora, rádio, empresário etc.



A partir daí, inicia-se um processo que Adorno descreve tal qual um roteiro, seguido pelo ouvinte após algumas audições:



1. você ouve a música e lembra vagamente de já tê-la ouvido antes;
2. você identifica a canção (é o hit tal!)
3. você submete a canção a um rótulo (isso é rock, é samba, é axé, é pop)
4. você realiza uma espécie de auto-reflexão no ato de reconhecimento (“conheço isso: isso me pertence”)
5. você faz uma transferência psicológica de reconhecimento/autoridade ao objeto (“esse hit é legal”!)



Já me vi realizando inconsciente – e conscientemente também – este ritual. A questão da familiaridade está muito relacionada às formas modernas de apreço. Conhecer é possuir, possuir é gostar, e não necessariamente nessa ordem. Uma coisa é você se pegar assobiando aquela canção detestável do “Sandy Jr.”; outra é você realmente admitir que gosta dessa canção, e muitas vezes gosta simplesmente por causa da previsibilidade, porque sabe cantar, porque já conhece, porque sabe o que vai acontecer depois.



Se eu gosto de uma música, escuto-a mil vezes, diariamente, semanalmente, sem me cansar. Sou um obsessivo em matéria de música e, fazendo um breve retrospecto, já cheguei perto de furar discos de Michael Jackson, Guns N’Roses, Metallica, Megadeth, Pantera, Sepultura, Death, Carcass, My Dying Bride, Planet Hemp, O Rappa, Nação Zumbi, Mundo Livre e Los Hermanos. Atualmente, escuto o disco da Roberta Sá todos os dias.



Será que o plugging se entranhou de maneira tão peremptória na nossa cultura que, pelo menos em matéria de música, estamos fadados a permanecer plugados?

17 comentários:

Cascarravias disse...

dá pra imaginar que o alvo da "bolação" (adoro essas suas heterodoxias linguísticas) do velho Teodoro Ornamento eram coisas como jazz ou mesmo a Nona Sinfonia, caso estivesse registrada em gravação?

Gosto muito do "regressão da audição", uma obra muito inspiradora do estilo cascarraviano.

Cascarravias disse...

a parte da Roberta Sá foi só uma ironia que eu não entendi direito?

gigi disse...

Leo, deixa de ser chato. A Roberta Sá é muito legal.

Preto, eu também tenho essa coisa de ouvir repetidamente um disco. Nem preciso dizer que o rei do meu quintal é o Paulinho da Viola, mas o Wanderley Monteiro, o Kind of Blue, o disco do Chet Baker cantando e mais uns vários tiveram seus momentos.

A bola da vez em outubro foi esse ao vivo da Mart'nália. Estranhamente, estou ouvindo toujours o Doolittle, do Pixies.

tinhamo.

Vivi disse...

Em pleno primeiro período de Letras, numa disciplina de introdução à Estética, tive que apresentar em seminário pra turma esse texto "O caráter de fetichismo e a regressão na audição". Passei muito aperto, achei estranhíssimos e até engraçados os termos tipo "música ligeira", e achei o texto um porre. Dá pra imaginar como foi a apresentação né.

4rthur disse...

Casca, é real. Escuto Roberta Sá diariamente. Bela voz.

Se eu pudesse voltar no tempo, levava um CD do Sorriso Garoto Maroto Travessos pro Teodoro Ornamento ouvir. Capaz do cara ter pesadelos que nem doutor Sujismundo explicaria.

Preta, quando o Casca viu minha pilha de CDs do Paulinho, disse: "cara, não acredito que tu gosta tanto assim de Chatinho da Viola!"

Casca, a parte "adoro essas suas heterodoxias linguísticas" foi só uma ironia que eu não entendi direito?

Cascarravias disse...

porra, falar que adorno ficou bolado é de certa forma heterodoxo. mas eu nao acho heterodoxia palavrão não.

4rthur disse...

é, e minha igreja permite.

. fina flor . disse...

Já tinha lido algo sobre isso, é impressionante, né?

eu também escuto atééééééé´cansar a mesma música, rs*.

não sabia que o disco da Roberta estava bom, assim, vou procurar.

beijos e obrigada pela gentil visita ao Fina Flor, volte sempre que quiser,

MM.

Samantha Abreu disse...

eu acredito que sim. Isso não vai mudar (espero que não piore!).

Se bem que isso pode não ser, necessariamente, considerado ruim. (sem colocar em discussão aqui, o valor - ou desvalor- da música).

Espero, apenas, que as pessoas se 'pluguem', ou as que já estão, permaneçam plugadas em músicas ricas. Ricas, só isso.

Texto ótimo, como sempre!
beijos,

Bianca Feijó disse...

Excelente texto,tenho certeza que muitas pessoas se identificaram com ele,principalmente na parte em que diz que escuta mil vezes a mesma música...rsrs.
Deixei um post no texto do Nietzsche também...
Muito bom!você estará contribuindo para enriquecer a literatura moderna brasileira.

Diogo Lyra disse...

Nunca, jamais, em tempo algum, eu escuto rádio. Prefiro a segurança das minhas velhas canções às surpresas desagradáveis do random radiofônico semi-controlado...

... mas pode repetir a música até o cu fazer bico que, chegando na fase 05, minha sentença será "esse hit é uma merda, exatamente como suspeitei".

Jana disse...

Ah, o Bê-a-bá sobre as Artes da Escolinha de Frankfurt é uma delícia. Quero ler todos esses autores e ser Doutara desse ABC.

Já te disse para tu te plugares no Bê de Walter Benjamin, o cara falou sobre as artes, reprodutibilidade e aura.

O meu A é de Adorno, Bê de Benjamin, e Cê - desde que eu ainda não sou letrada vai para Kant (que nem é da escola mas gosto do Belo e do Sublime).

Quanto a ouvir uma banda só, assim pra sempre, sei fazer isso não, seu moço. Sou dona de uma alma entediada e coração promíscuo. Mas, há raras ocasiões que eu me deleito com as cócegas cerebrais.

Nana disse...

Ah, mas uma coisa é ouvir sem parar uma música que toca na rádio Globo AM. Outra beeem diferente é ouvir a que toca na MPB FM...

Unknown disse...

eu tenho escutado um antigo da Gal, o que ela canta Tom JObim, comprei o cd e ganhei o DVD do show... alem dessa escuto Pirata de Bethania, depois de varias idas ao mesmo show, to craque, me lembro ate das ordens da musica no show da diva!
ui!
beijos

Cascarravias disse...

sou capaz de apostar algum dinheiro que eu gostaria mais da musica da globo am

Nana disse...

Credo, Cascarravias!

Anônimo disse...

Ahhh, música dodecafônica é uma delícia! Mas com alguém do lado dando um cafuné, pra fazer cócegas no cérebro. é que eu gosto do belo e do sublime. e o meu C é de coração...