terça-feira, maio 29, 2007

Sobre o consumo de funk pela classes médias e altas



Amanhã viajo para o Recife, por ocasião do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia – o que provavelmente me deixará ausente do blog até semana que vem. Como o tema (citado no título) tem grande proximidade com as coisas que geralmente discuto aqui, resolvi esplaná-lo de maneira breve, pra que o astuto leitor, se assim desejar, possa dar sua opinião. O texto, na íntegra, deverá ser publicado na página do Congresso.



A opção pelo tema é resultado de uma observação e de um desconforto. A observação é a de que o funk se encontra cada vez mais presente nos redutos das classes médias e altas, como boates localizadas nas áreas nobres da cidade, happy hours do centro da cidade, eventos que ocorrem nas grandes casas de show (como o baile Skol que está sendo anunciado), chopadas de faculdades e academias de ginástica.


O desconforto vem do fato de que alguns estudiosos do tema estão apressando-se em enaltecer o funk como elemento de integração. Ou seja: a partir do momento em que a classe média começa a consumir o funk, ele deixaria de ser um “símbolo de estigma” para tornar-se um “símbolo de prestígio” (categorias usadas por Goffman).


Só para citar um dos exemplos mais exaltados, a autora Jane Souto, no livro Galeras Cariocas (organizado pelo antropólogo Hermano Vianna), afirma que movimentos como o funk “rompem fronteiras de classe e de cor”, defendendo que, nos bailes funk, “com jovens de classe média, partilha-se da mesma dança, do mesmo som, de um mesmo repertório de gírias, de uma mesma emoção, de um mesmo habitus social”.


Uma visão lúdica, poética até, mas distante da realidade. O que move este tipo de opinião apressada é o fato de que o funk, que é “som de preto, de favelado” (como cantam Amilcka e Chocolate), está sendo ouvido pela playboyzada. E será que isso garante algum tipo de integração, ou pelo menos um recrudescimento das distâncias sociais? Será que isso aproxima “morro” e “asfalto”? Creio que não.


Alguns artigos relevantes já foram escritos sobre o consumo e apropriação de repertórios musicais do Nordeste por segmentos da classe média carioca. Cássio Soares, ex-colega de classe, no artigo Uma pequena burguesia Folk? Ou do papel da cultura popular no imaginário urbano juvenil de classe média carioca, e Claudia Rezende, em Os limites da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na Feira de São Cristóvão, revelam que a cultura do outro, quando apropriada por estes grupos, tende a ser ressignificada e reformatada para ser consumida apropriadamente. E será que não é isso que ocorre com o funk também?


Vamos aos fatos. Tive poucas oportunidades de realizar trabalho de campo até agora (pretendo continuar com minha pesquisa quando voltar do Congresso), mas alguns dados preliminares colhidos em entrevista já são bastante reveladores. As opiniões citadas abaixo referem-se a conversas que tive com alguns jovens, de 19 a 23 anos, na porta de um evento exclusivo de música funk um uma casa de espetáculos no centro do Rio, cujo preço da entrada (40 reais, 20 pra estudante) e o das bebidas (3 reais o refrigerante e 4 o copo plástico de cerveja) já dá uma dica de quais segmentos socioeconômicos estamos falando.


Primeira observação: os bailes de comunidade não são freqüentados pelos jovens entrevistados. Apenas uma jovem, de 23 anos, afirmou ter ido a mais de um baile dentro de uma favela, quando era menor – coisa que já não faz mais. Uma das outras entrevistadas, de 18 anos, justifica:


“lá [na favela] os riscos são muito maiores de qualquer outro lugar, assim, que a gente tá acostumado a ir, sabe, em uma noite, você ir, pode acontecer milhões de coisas, sabe? Também pode acontecer, vamos supor, aqui, mas o risco é bem menor”.


O receio quanto à insegurança nas favelas, relacionado à presença de traficantes de drogas armados nestes espaços, acaba por interferir na visão dos entrevistados em relação a toda a população local. Isto fica claro quando uma das jovens, de 17 anos, diz que “teria medo” de relacionar-se afetivamente com um morador de comunidade pobre. Outra entrevistada, de 18 anos, revela que “se vier uma pessoa da comunidade pra cá hoje e tal, pra ‘ficar’, tranqüilo, mas, assim, pra namorar eu já não sei”. A jovem de 23 anos, por sua vez, é taxativa: não “ficaria” com alguém da favela, pois “são feios e mal arrumados”.


Outra coisa que pude observar é que a identificação dos entrevistados com o funk é muito mais relacionada à “batida” e ao “som” do que propriamente às letras das músicas e ao estilo. Com exceção de um rapaz entrevistado, todos afirmaram não se identificar com o rótulo de “funkeiros”. Quando perguntados sobre o que seria o “estilo funkeiro”, uma jovem responde:


"pode existir aquele negócio ‘tchutchuca’, aquele negócio que, tipo assim, eu acho horrível, entendeu, porque, tipo assim, é aquele tipo de mulher que dança e não se importa com a letra, que a gente fala assim, ‘pô!’, bota a roupa realmente pra se vulgarizar, sabe, o que não é o nosso caso, sabe, a gente vai pro funk mas nunca vai botar um shortinho e tal" (grifos meus).





Ou seja: a ampla utilização de atributos pejorativos para a descrição do baile de comunidade (perigoso), “homem da favela” (perigoso, feio, mal-arrumado) e “mulher funkeira” (vulgar), além da necessidade de afirmação do distanciamento do que seria o “estilo funkeiro”, impedem que se veja algum tipo de potencial integrador no consumo de funk pelas classes médias e altas. Ao contrário, as opiniões emitidas pelos jovens entrevistados parecem, antes, reforçar a utilização do campo cultural como espaço simbólico de reafirmação das distâncias sociais.

quarta-feira, maio 23, 2007

Como nossos pais

Dia desses, a exuberante Lady Gahyva chamou-me a atenção para as semelhanças que existem entre Wild World, clássico de Cat Stevens, e O Mundo é um Moinho, de Cartola, uma vez que em ambas existe a figura de um narrador empenhado em alertar seu interlocutor dos males do mundo.

Mas se em Wild World o autor se dirige a uma possível companheira, dizendo que “o mundo é selvagem” e que “é difícil passar apenas com um sorriso”, a história por trás de uma das mais belas canções de Cartola é outra, reveladora das angústias de um pai que vê sua filha ir para as ruas ganhar a vida como prostituta.


Ainda é cedo amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora da partida
Sem saber mesmo o rumo que iras tomar
Preste atenção querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco tua vida

Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem amor

Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó
Preste atenção querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavastes com teus pés



Talvez este seja, na minha opinião, o mais sentimental relato de pai para filho que já tive notícia na música brasileira. Mas esse tipo de narrativa é recorrente enter nossos compositores, muitas vezes utilizado como recurso pelo autor para contar uma história a partir de um ponto de vista diferente do seu. Chico Buarque, por exemplo, incorpora o papel de uma mãe humilde e ingênua que ignora as práticas ilícitas de seu filho, na canção Meu Guri:


Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço?
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri



Da música brasileira atual resgatei dois exemplos, tirados das canções dos dois compositores da banda Los Hermanos. Em Um Par, música de Rodrigo Amarante, acompanhamos a história de uma mãe com dificuldades de aceitar a independência do filho, como podemos ver no trecho abaixo:


Dê motivo pra outra vez acreditar na cascata da vez
que você comprou assim 0+10
um presente pra mim
mas se eu perguntar
de onde veio esse agrado
você vai gritar!
Diz que é homem feito, sei não!
ah faça-me o favor!

Diga ao menos o que foi que eu faltei em lhe explicar
Diz que a gente sempre foi um par...

Sai domingo diz que é o dia de jogar
mas que jogo eu não sei
Fica até segunda o dia clarear e troféu não se vê!
Entra sem falar, sai correndo e volta outra vez
sem cumprimentar!Nem parece aquele!

Eu rezo, ai deus do céuou alguém no chão
diga-me o que foique eu deixei faltar!
O que eu não consigo é entender
como é que um filho meu é tao diferente assim de mim!
Me faz entender



Finalmente, na canção Adeus Você, de Marcelo Camelo, o autor traz a história de uma mulher que resolve se casar de novo e mudar de cidade (se a história que me contaram for verdadeira, essa mãe seria a mãe de sua esposa e, portanto, sua sogra). A letra é um desabafo desta mulher para sua filha, já adulta, que tem dificuldade em aceitar a decisão de sua mãe:


Adeus você
Eu hoje vou pro lado de lá
Eu tô levando tudo de mim
Que é pra não ter razão pra chorar
Vê se te alimenta e não pensa que eu fui
por não te amar

Cuida do teu
Pra que ninguém te jogue no chão
Procure dividir-se em alguém
Procure-me em qualquer confusão
Levanta e te sustenta e não pensa que eu fui
por não te amar

Quero ver você maior, meu bem
Pra que minha vida siga adiante

Adeus você
Não venha mais me negacear
Teu choro não me faz desistir
Teu riso não me faz reclinar
Acalma essa tormenta e se agüenta
que eu vou pro meu lugar

É bom às vezes se perder

Sem ter porque sem ter razão
É um dom saber envaidecer por si
Saber mudar de tom

Quero não saber de cor, também
Pra que minha vida siga adiante


Guardo grande admiração por todos os autores citados, e fico satisfeito por constatar que, em meio a tanta coisa ruim que polui nossos ouvidos ultimamente, ainda haja alguma inspiração lírica na música brasileira.

segunda-feira, maio 21, 2007

Sobre a bossa nova

Trabalhar com projetos culturais tem lá suas vantagens. Neste fim de semana, por exemplo, fui incumbido da missão de ir à Conservatória, distrito de Valença, para acompanhar a 6ª edição do evento Noite da Bossa Nova, que acontece anualmente por lá.


Conservatória, apropriadamente conhecida como capital da Seresta, é um ótimo lugar pra quem gosta da música de nossos cantadores e seresteiros. Suas casas emplacadas com nomes de músicas, seus restaurantes com comida caseira e música ao vivo, suas serestas semanais que agregam locais e visitantes numa espécie de procissão musical, enfim, são fatores tão aconchegantes que acabaram dando a este parágrafo uma cara de matéria de revista de viagem e turismo.


Mas minha intenção era falar da bossa nova, estilo musical surgido no berço da classe média carioca dos anos 1950 a partir de uma apropriação do samba por estes segmentos, e com alguma pitada do jazz norte-americano – ou, como querem os que compram o discurso elitista, uma “sofisticação” do samba (este sim música popular, pois que produzido pelas chamadas “classes populares”).


O nascimento da bossa nova está registrado nos sulcos do vinil Chega de Saudade (1959), de João Gilberto, mais precisamente no jeito de tocar violão que este músico desenvolveu: enquanto o dedão faz, nos bordões do violão, a marcação mais forte do segundo tempo do compasso – característica magna do samba –, os outros dedos puxam as cordas agudas em ritmo sincopado. Ou seja: as notas graves reproduzem o tempo do surdo, enquanto as agudas fazem as vezes de tamborins. Esta adaptação do ritmo percussivo do samba para as harmonizações violonísticas foi essencial para a consolidação da bossa nova como estilo ímpar de execução musical, influenciando praticamente todos os gigantes do violão que surgiram posteriormente, como Baden Powell e seu também ímpar estilo (aproveito para recomendar, veementemente, especial atenção ao violão dos afro-sambas de Baden e Viníncius de Moraes).


Mas há um elemento extra, bastante arraigado no estilo bossanovístico de se tocar e também importantíssimo para marcar a identidade sonora do estilo: trata-se de cantar e tocar o violão bem baixinho, quase sussurrando. O motivo disso é explicado por Carlos Lyra ou Roberto Menescal (não lembro qual dos dois) no filme Coisa Mais Linda: é que naquele tempo a explosão da especulação imobiliária deu início a uma onda de construções de edifícios (que perdura até hoje) com apartamentos menores e com menos isolamento acústico. A solução, para evitar as reclamações de vizinhos e chamadas policiais, era tocar e cantar cada vez mais baixo, o que logo se transformou em característica marcante.



Ou seja: nada mais avesso à bossa nova do que o furdunço provocado pelas rodas de samba nos botequins e lares da zona norte e dos subúrbios da cidade – as mesmas rodas de samba que outrora serviram de argamassa para a construção do estilo musical que, ironicamente, ficaria conhecido como Música Popular Brasileira.

quinta-feira, maio 17, 2007

Uma chopada "gummy"

Na terça passada fui à chopada do meu curso de graduação, que concluí no fim de 2002. Atravessei a poça por dois motivos: 1) Teria a chance de rever ilustres e saudosos amigos, com os quais tenho tido pouco (ou nenhum) contato; 2) A cerveja seria gratuita e minha entrada, enquanto veterano, idem.

Antes que eu comece a destilar os motivos da minha frustração, é necessário contextualizar o incauto leitor: o curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense não passa dos 12 anos de existência, e recebe, semestralmente, algo em torno de 30 ou 40 calouros. Quando eu entrei na Universidade, no segundo semestre de 1998, o curso recebia 20 inscritos por semestre, e devia ter, no total, cerca de 100 alunos. Mesmo com o grande crescimento auferido no passar de uma década, julgo ainda tratar-se de uma chopada de dimensões até certo ponto humildes, principalmente se comparada com as mega-produções (hoje terceirizadas) das chopadas de cursos como Engenharia e Medicina.


Talvez para os calouros e muitos veteranos que compareceram a este evento, a chopada tenha sido divertida. Pra mim, veterano de tempo imemoriais, foi uma merda. De longe, a pior de todas as chopadas da ProCult que já fui. E vamos aos porquês.


1. A música: estava muito, mas muito ruim. Aquele dance/house de academia, sabe? Pra você ter uma idéia, os melhores momentos sonoros foram flashbacks dos anos 90, tipo Depech Mode, EMF, Deee Lite e coisas do gênero. Imagina só: "Enjoy the silence" sendo o melhor momento de uma festa jovem de 2007! Lembro quando as chopadas tinham Bob Pai e Tchello nas carrapetas, com muita música brasileira e diversidade sonora. Até som ao vivo já teve, jam sessions com calouros subindo pra cantar e tudo! O som dessa edição foi lamentável, e pelo visto o mais contente com o som era o próprio DJ, que dançava tal qual um Go-Go Boy em happy hour no Centro.


2. A cerveja: embora gelada, era liberada em doses homeopáticas. Ocorria basicamente assim: você se acotovela entre os corpos suados de várias pessoas, enche um copo com cerveja, sai e bebe. Quando volta pro refil, só tem gummy (pra quem não conhece, uma bebida feita da infeliz mistura de cachaça com sucos em pó no estilo Ki-suco – pra quem é desse tempo – ou Fresh). Aí você espera uns dez, quinze minutos, e volta a sofrer por mais um copo. Ou seja: pra quem não curte as tais bebidas coloridas tiradas de grandes garrafas pet, a média de dosagem alcoólica era de quatro a cinco copos de plástico de cerveja por hora. Triste pros mais afoitos como eu, que costumam entornar de quatro a cinco vezes essa quantidade no mesmo espaço de tempo.


3. Os jovens: este ponto até passaria despercebido, não fosse a completa ausência de veteranos no local. Houve exceções, é claro, dentre elas saudosos amigos de curso e esquadrilha como Johnny, Raphael, Luisinho e o trio de meninas superpoderosas Gi, Isa e Ju (sem dúvida, os melhores partidos da festa). Todavia, a grande maioria resolveu (sabiamente, reconheço agora) não dar a cara à tapa na chopada. Até porque, sem o apoio de outras lendas históricas, veteranos jurássicos como eu ficam se sentido, como diria o amigo Edu, verdadeiras múmias embalsamadas perto da garotada que era, no mínimo, três copas do mundo mais nova. Pra se ter uma idéia, a certa altura ouvi um jovem mancebo mandar a seguinte pérola dentro do banheiro:


- Peitooooo! Hoje eu quero tocar num peitoooo!!!


Realmente, essa foi a cereja do bolo. Senti-me numa high school americana, só que sem os atiradores revoltados.


4. Os seguranças: os dois ogros postados no umbral da porta de entrada (uso o adjetivo "ogro" pela atitude de brutos, e não pelo tamanho, já que nem eram tão grandes assim) disseram ter sido contratados pela galera organizadora da chopada, que deve ter entrado no curso lá pros idos de 2004, 2005. E como explicar pra esse povo que eu era de 2/98, formado em 2/2002, se eles nunca me viram? Mencionei o nome de professores e funcionários, quase tive que contar historinhas do meu tempo de faculdade, pra finalmente entrar, e ainda ouvindo a seguinte gracinha de um dos brutos: "assim é muito fácil, né?". E pior: como o cigarrinho da confraternização estava terminantemente proibido dentro do local, tinha um pessoal veterano que entrava e saía do estabelecimento - até por uma questão de respeito, se é que vocês me entendem. E os ogros barrando a galera na porta! Diziam pra mim: "ah, tu não vai sair de novo não, tu já entrou e saiu umas cinco vezes!" Ou seja: o cara me reconhecia, sabia que eu era veterano, sabia que veterano entra de graça a qualquer hora, e ainda assim queria impedir meu direito (e o de outros), legalmente constituído pela própria comissão organizadora, de ir e vir.



Enfim, quero deixar claro que não estou culpando a organização do evento - aliás, minha intenção não é, nem de longe, apontar culpados por isso ou aquilo. Só estou usando do meu direito de emitir opinião, desde já antevendo as críticas daqueles que nem conheço. O caso da mochila do camarada só vem piorar as coisas. De maneira que, se nas futuras edições da festa não houver uma adesão em massa da galera da lista da ex-procult, temo ter encerrado (de maneira pífia, infelizmente) minha participação em um evento que já não tem nada a ver comigo e com aqueles que frequentaram o curso de produção cultural e (aqui fico meio melodramático e saudosista, se me permitem) vislumbravam contribuir para a produção de eventos e produtos culturais de qualidade e em consonância com a cultura brasileira, e não fazer do principal evento de socialização e recepção dos novos alunos do curso uma grande festa gummy, com bebida gummy, seguranças gummy e música gummy.

terça-feira, maio 15, 2007

Enólogos de amanhã (propaganda institucional)

sugestão do Bruno




Depois de farmácias, restaurantes e eventos culturais, o Governo do Estado do Rio de Janeiro une esforços com a Prefeitura do Município para lançar a campanha "Enólogos de Amanhã", que contará com o apoio logístico do projeto "Vinho a 1 Real".



Na terceira terça-feira do mês, todos os jovens que apresentarem a carteirinha de estudante (com marca d'água ou carimbo da instituição) ou boleto bancário com a última mensalidade paga terão direito a uma aula sobre vinhos e uma taça de vinho Chardonnay ou Pinot Noir, em qualquer estabelecimento que trabalhe com estas bebidas. Mas atenção, pois o Ministério da Saúde adverte: cada jovem terá direito a apenas uma taça.



No final do ano, aqueles que tiverem acumulado mais conhecimento sobre degustação de vinhos concorrerão a uma viagem ao sul da França para conhecer de perto as famosas vinícolas da região, desfrutando também da companhia de um ilustre e respeitado ator ariano da Rede Globo de televisão.

Sobre as condições desiguais de apropriação cultural

O fato vergonhoso que irei mencionar chegou ao meu conhecimento no balcão do Buteco do Edu – página de um amigo tijucano, que promove uma verdadeira cruzada contra o que chama de bares de merda (“pés-limpos” como Devassa, Manuel & Juaquim, Informal, Espelunca Chic e Belmonte).

O próprio Edu é quem narra:


“Ocorre que recentemente, num desses domingos em que a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro oferece, em suas salas, ingressos para o teatro a R$1,00 (um real), durante a apresentação do musical "Império", no Teatro Carlos Gomes, o afrescalhado ator [Miguel Falabella] esqueceu a fala de seu personagem. E dirigiu-se assim ao público:


"Mas também por R$ 1 eu não tenho a obrigação de decorar o texto".


E ainda acrescentou outra fala ao personagem:


"E quero baixar um decreto: nas noites de R$ 1, fica proibido o uso do banheiro. Ora, por R$ 1 ainda querem o quê? Vão fazer xixi na rua!"




Como o próprio Edu mencionou, o embaraçoso episódio deu-se durante o projeto “Teatro a 1 Real” da Prefeitura do Rio, um programa de políticas culturais que barateia o ingresso de espetáculos teatrais no último domingo de todo o mês, com o intuito de democratizar o acesso de toda a população à cultura (aqui entendida como produto cultural de cunho artístico).


Ações populistas como essa já foram realizadas pelo casal Garotinho em restaurantes e farmácias. Entretanto, quando trata-se de produtos culturais, o buraco é mais embaixo. E digo isso porque a democratização do acesso à cultura não implica, necessariamente, na democratização do consumo e do entretenimento – este entendido como experiência ou vivência pessoal.


Tentarei explicar meu ponto através de um exemplo: se há uma montagem de uma tragédia de Shakespeare com entrada a um real ou um concerto de música clássica gratuito na praia, não resta dúvida de que famílias pobres e ricas terão as mesmas condições materiais de acesso. Entretanto, a possibilidade de fruição destes espetáculos talvez se dê de forma desigual, já que os indivíduos com melhor condição financeira tiveram a chance de, na trajetória de suas vidas, serem socializados num meio onde o acesso a estas obras sempre esteve presente.


A educação fornecida por instâncias como a família e a escola confere aos indivíduos dos estratos médios e altos a oportunidade de absorver os códigos necessários ao entendimento (e conseqüente apropriação) de bens culturais que se encontram distantes das classes populares. Uma vez que tal disposição estética é internalizada e “naturalizada”, a tendência é que seja mais fácil para este indivíduo extrair algum tipo de prazer de uma obra que consegue, de alguma forma, classificar e se apropriar (Adorno diria algo como: rotulo, logo é meu).


Desta forma, a arte deixa de estar necessariamente ligada a um sentido (perguntas como “o que quer dizer essa pintura?” tornam-se irrelevantes) e passa a bastar-se por si só, pela estética – é a “arte pela arte”, como queria Flaubert. Um bom exemplo desse fenômeno pode ser encontrado no quadrinho abaixo, do André Dahmer.



Se um jovem, por outro lado, nasceu em uma comunidade pobre e possui limitado poder aquisitivo, dificilmente terá a oportunidade de ser socializado de forma a introjetar dispositivos estéticos que lhe permitam olhar para um emaranhado de linhas e dizer: “cara, foi na fase cubista que o Picasso atingiu o ápice da criatividade artística!”.


Sem o recurso do aprendizado estético, os indivíduos de poucas posses têm acesso limitado à produção cultural. E quando este acesso é disponibilizado, surge muitas vezes através de políticas públicas de cunho populista como a supracitada, e raramente durante a educação escolar destes indivíduos.


Assim, as distâncias que existem entre as condições materiais (e, consequentemente, de educação) das elites e aquelas dos indivíduos pobres resultam, vez por outra, na falta de respeito e em humilhações perpetuadas por aqueles que, do alto da crença na própria superioridade (uma vez que foram “artisticamente educados” e são, portanto, “mais cultos”), julgam estar fazendo um favor aos “populares” quando, na verdade, fornecem a argamassa para cimentar a barreira paternalista que confere um fluxo desigual às negociações e trocas culturais entre povo e elite.









Para ler mais sobre o assunto, uma boa dica é ir atrás das obras do sociólogo Pierre Bourdieu, como A Economia das Trocas Simbólicas, La Distinción e outras. Os livros de Néstor García Canclini, que misturam sociologia, antropologia e estudos de comunicação, também versam sobre o tema.

sexta-feira, maio 11, 2007

Por baixo da batina

Abro o jornal, ligo a TV, pego o elevador da empresa onde trabalho e parece que só existe um assunto: a visita do papa alemão a São Paulo.


(pausa pra imaginar o caos instaurado naquela cidade já caótica, seguida de um suspiro de alívio por morar no Rio).


Parece ser o momento perfeito para cometer chacinas, seqüestrar pessoas, enfim, praticar todo o tipo de abuso concebível, uma vez que ninguém está interessado em qualquer assunto que não seja relacionado ao intelectual pontífice.


Inteligentes e perspicazes que são, nossos deputados souberam aproveitar-se deste religioso momento e tomaram uma atitude talvez pouco católica: aprovaram, na última quarta, um reajuste de 28,5% nos salários dos parlamentares, dos ministros, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do vice-presidente, José Alencar.


A Folha de Sampa nem fez questão de esconder o óleo de peroba estampado na cara desses malandros: diz a reportagem que “os parlamentares aproveitaram a visita do papa Bento XVI ao Brasil para colocar, sem alarde, o assunto na pauta de votações da Câmara”.


Se tal projeto for também envernizado pelo Senado Federal, o salário dos deputados e senadores vai passar dos atuais R$ 12.847 para R$ 16.512,09. Lula, que recebe atualmente R$ 8.885, passa a receber R$ 11.420, pela proposta aprovada. Já o salário de Alencar e dos demais ministros subiria dos atuais R$ 8.362 para R$ 10.748.






Mas quem vai preocupar-se com isso, enquanto Frei Galvão torna-se o primeiro santo brasileiro?





É nessas horas que dou graças a Deus por ser ateu.

quinta-feira, maio 10, 2007

Sobre a Teoria da Conspiração


O termo que dá título a este post é conhecido de todos, e possui tanta popularidade que encontra-se em mais de 127 mil páginas, segundo o Grande Oráculo.


A definição do Wikipedia é simplória, mas serve: “é uma teoria que supõe que um grupo de conspiradores está envolvido num plano e suprimiu a maior parte das provas desse mesmo plano e do seu envolvimento nele. O plano pode ser qualquer coisa desde a manipulação de governos, economias ou sistemas legais até à ocultação de informações científicas muito importantes”.


Nesse buraco negro da conspiração, encontram-se fatos discutíveis como o assassinato de Kennedy, a chegada de extraterrestres à Terra, a presença de um suposto símbolo maçon na nota de um dólar e a mais clássica de todas: a discussão sobre se o homem, de fato, pisou na Lua, ou se foi tudo um vídeo feito pelo cineasta David Lynch nos desertos de Nevada para a Nasa, que estava puta com os soviéticos e sua imponente espaçonave MIR.


Em tempo de internê, é impossível confiar em tudo o que se lê por aí. Mas como me interesso por essas “teorias conspiratórias”, independente de dar algum crédito a elas, vou citar três histórias recentes, no mais escrachado estilo Jack Palance. Com isso, pretendo provocar no leitor um dos seguintes efeitos: ou coloco a pulga atrás da orelha, ou um sorriso largo no meio da cara.





Caso 1: Tsunami

Os teóricos da conspiração acreditam que a explosão foi causada pelos norte-americanos para alterar a órbita da Terra, de forma a impedir que um asteróide colidisse com nosso planetinha azul-cinzento. Segundo a teoria, existiam 8 ogivas nucleares submersas no Indico Sul desde 1978, quando um submarino americano afundou por lá, e teriam sido estas as ogivas explodidas pelo governo estadunidense em 2004. A operação, claro, teria ocorrido no maior sigilo, já que nenhum governo haveria de concordar com tal estratégia. Isso justificaria o fato daquele país saber com antecedência do efeito Tsunami, embora não tenha avisado a nenhum dos países da região “por falta de tempo” (o texto completo dessa conspiração está aqui).





Caso 2: 11 de Setembro

Esta teoria está balizada por livros como 11 de Setembro, uma terrível farsa, de Thierry Meyssan, e documentários como o Fahrenheit 911, de Michael Moore, e 9/11 Mysteries, que está disponível na página do camarada Revolution 9-11. Em linhas gerais, a responsabilidade do ato é atribuída a George W. Bush, como uma manobra para justificar as investidas do país contra países produtores de petróleo com os quais os EUA não possuem relações diplomáticas – como o Iraque do hoje falecido Saddam Hussein. Todos os argumentos desse suposto pseudo-atentado encontram-se aqui.





Caso 3: O Foguete Brasileiro

Este caso está diretamente ligado a nós, brazucas, e diz respeito à morte de 21 funcionários civis do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) na explosão do foguete brasileiro VLS (Veículo Lançador de Satélites) na Base de Alcântara, no Maranhão, em 2003. Os depoimentos do Ministro Ronaldo Sardenberg, do brigadeiro Reginaldo dos Santos e do vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Espacial José Monserrat Filho, todos anteriores à explosão, são convergentes: “Washington nunca engoliu a idéia de que o Brasil pudesse desenvolver o foguete VLS”.


Entre os 21 mortos estavam técnicos e engenheiros com cerca de 20 anos de experiência, um capital de conhecimento humano totalmente perdido em um único acidente. No site Mídia Independente, um leitor comenta que “Ucrânia e Brasil estavam entrando num acordo e excluindo os EUA dos futuros lançamentos, parceria muito bem vinda e ousada no terceiro mundo”.


Outro leitor é ainda mais enfático:


“A equipe do CTA de São Bernardo era muito boa mesmo, os caras eram os únicos que tinham conhecimento dessa tecnologia no Brasil, pra formar outros iguais vai demorar anos. E além do mais os americanos tinham acesso irrestrito a base, proibindo inclusive a entrada de brasileiros, eles conheciam o programa mais que os próprios técnicos do CTA. A turbina explodiu no "lugar certo na hora certa". As coisas começam a ficar claras a partir de agora, os EUA não vão tolerar que alguém no mundo ouse possuir tecnologia similar a deles nem para fins pacíficos, no caso levar satélites de TELECOM”.


A presença de um navio norte-americano navegando na costa do Maranhão alguns anos antes leva os conspiratórios a uma hipótese: “os sistemas de destruição foram acionados intencionalmente por um sinal transmitido aos 55,9 segundos de vôo por alguém fora do centro de lançamento de Alcântara”.


Acredite... se quiser.



*


Note o caro leitor que, em todos estes três casos (e na maioria dos outros existentes), é sempre o governo dos EUA o grande responsável pelos males do mundo. Será conspiração demais, ou estaríamos certos em afirmar que é lá que está o lado negro da força?




quarta-feira, maio 09, 2007

Parafraseando



"As pessoas acham que sou um intelectual porque uso óculos, e acham que sou um artista porque os meus filmes dão prejuízo, mas, de fato, sempre tive uma vida de pequeno-burguês totalmente normal".





Woody Allen

segunda-feira, maio 07, 2007

Famosos na cara do gol

A moderna tecnologia prestou um grande serviço aos amantes do futebol, que hoje podem conferir replays de gols e de belas jogadas, de faltas, contar com o recurso do tira-teima para xingar o juiz com propriedade e assim por diante.


Mas, de uns tempos pra cá, em meio a estes interessantes replays de tudo quanto é ângulo, passamos a ser obrigados a assistir flashes de celebridades (ou, como dizemos mais apropriadamente, de “famosos”) que, sem dúvida, devem receber ingressos gratuitos para o “camarote global” com o intuito de mostrarem suas famosas caras para as câmeras da emissora azul-marinho.


Agora me diz uma coisa: porque é que, junto ao replay do belo gol do Dodô (sou flamengo e tenho uma nega chamada bonita, mas não deixo de admirar belos gols como o de Dodô), eu tenho que ver a tristeza nos olhos da Carol Castro e a alegria explosiva da ex-malhação Samara Felippo? Ou discutir se é melhor ter Stephan Necersian ou Gabriel O Pensador como colega de time?





Esbravejos à parte, só existe uma vantagem no fato do futebol carioca estar pior do que o paulista: não ter a final do nosso campeonato narrada pelo Galvão Bueno.

sexta-feira, maio 04, 2007

Se os homens menstruassem

Sexta-feira, humor melhorando (santa semana de apenas três dias de trabalho!). Resolvi postar um texto, escrito pela feminista Gloria Steinem, que tem como mérito o fato de levantar algumas questões sobre as diferenças entre o universo masculino e feminino, de forma interessante e irreverente. Apesar de ser tão velho quanto eu, este texto continua atual em muitos aspectos, e mostra que a igualdade de gêneros está ainda longe de ser alcançada.




“Se os homens menstruassem”, por Gloria Steinem (1978)


Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.


Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pênis. O poder de dar à luz faz a “inveja do útero” mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis.


Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: “Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!”


Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo “superior” será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo “inferior” será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais “fracas’. Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, “Que nada, isso é trabalho de mulher.” A lógica nada tem a ver com a opressão.


Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não?


Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino:


Os homens se gabariam da duração e do volume.


Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia.


Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidose muito a respeito das cólicas menstruais.


Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — “Para aqueles dias de fluxo leve”.



As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior número de medalhas olímpicas.


Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação (”men-struação”, de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha (”Você precisa dar seu sangue para tirar sangue”), ocupariam os mais altos cargos (”Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?”), ser padres, pastores, o Próprio Deus (”Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados”), ou rabinos (”Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas”).


Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais ("O resto não passa de uma questão”) ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês ("Você precisa dar seu sangue pela revolução”).


O povo da malandragem inventaria novas gírias ("Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez”) e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:


— Cara, tu tá bonito pacas!
— É cara, tô de chico!



Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é “The Fonz”, embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).


Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso “naqueles dias”. Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado.


As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres (”elas podem desmaiar ao verem sangue”).


É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática,ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?


A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação.


Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato “desses seres” não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.


E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir?


Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses : Phyllis Schlafy. “O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!”: Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da “inveja menstrual”. As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. (”Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!”) As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-truariam. (“Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia”, explicariam, “é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo”).


Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.*


A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.


Se permitíssemos.





* Meus agradecimentos [da autora] a Stan Pottinger pelos muitos improvisos incluídos neste texto.






FONTE: STEINEM, Gloria. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher no século XX. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. p. 416-419.

quinta-feira, maio 03, 2007

Sobre a Loucura


Faltam dois anos para que o livro Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam (1467-1536), complete 500 anos. Como não sei se a violência, o aquecimento global ou a iminente invasão (militar) dos EUA ou (cultural) da China me permitirão estar vivo até então, resolvi antecipar minha homenagem a este belo e irreverente livro.


Escrito em 1509 na casa de Thomas Morus – ou More (1478- 1535), o Elogio da Loucura trata exatamente sobre o que o título propõe: a Loucura, enquanto interlocutora, faz uma espécie de ode a si mesma – uma vez que os homens são ingratos e não se atreveriam a tanto.


Esta homenagem auto-referida justifica-se pela Loucura acreditar ser, ela própria, responsável pela alegria dos homens e dos deuses, das crianças e dos velhos. Isto porque, enquanto “estado natural do homem”, se contrapõe à sabedoria, e neste sentido arranca felicidade do agir sem pensar, da ação desmesurada e despreocupada. É por estes motivos, aliás, que a Loucura julga ser responsável pelo matrimônio – afinal, quem, em sã consciência, se atiraria em tal direção por livre e espontânea vontade?


Diz a Loucura:


“Afinal de contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida sem a minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc., se não se enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura”.


É importante contextualizar a época em que o livro foi escrito, e ter em mente que Erasmo era um humanista, defensor da natureza em detrimento das ciências, que levariam o homem a um estado artificial (este é, pelo menos, meu parco entendimento sobre o que rolava na época). É neste contexto histórico que a Loucura enaltece as palavras de Sófocles ("quanto menor a sabedoria, maior a felicidade") enquanto critica a conduta de Sócrates:


“Mas, afinal de contas, porque é que esse grande homem foi acusado perante os magistrados? Porque foi ele condenado a beber cicuta? Não teria sido, talvez, a sua sabedoria a causa de todos os seus males e, finalmente, de sua morte? Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das nuvens e das idéias, ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se adaptar a eles”.


Ter contato com este livro durante o mestrado aprouve-me de várias maneiras, sobretudo por tratar-se de uma leitura leve e por destilar, de forma bastante humorada, críticas sagazes à figura do “sábio” ou “intelectual”. Os trechos que cito abaixo são o melhor exemplo do que digo. Divirtam-se com a descrição do sábio feita pela Loucura.


“Vede aqueles homens magros, tristes e rabugentos que se dedicam ao estudo da filosofia ou alguma outra coisa difícil e séria; a alma deles, constantemente agitada por uma multidão de pensamentos diversos, influi sobre seu temperamento; os espíritos vitais dissipam-se em grande abundância, o úmido fica seco, e geralmente eles se tornam velhos antes de terem sido jovens”.


“Meus loucos, ao contrário, sempre gordos, trazem no rosto a imagem brilhante da saúde e da fartura. E certamente não sentiriam nenhuma das fraquezas se não fossem sempre um pouco afetados pelo contágio dos sábios”.


“Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais convidados com frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta. (...) Entra o sábio em alguma palestra alegre? Logo todos se calam, como se tivessem visto o lobo. Trata-se, porém, de comprar, de vender, de concluir um contrato, em suma, de fazer uma dessas coisas que diariamente sucedem a cada um? Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem, a tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras”.


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quarta-feira, maio 02, 2007

A Zica está solta

Uma amiga do trabalho atropelada de manhã, uma tentativa (não consumada) de assalto no fim da tarde, uma tentativa de roubo (essa sim, consumada) de madrugada. Tudo no mesmo dia, num raio de menos de um quilômetro.

Dias depois, ainda parece que a Zica ronda, levando até mesmo a inspiração de escrever.

Volto aqui assim que a frente fria for embora.