segunda-feira, setembro 17, 2007

Cartelas de identidade

Que vivemos numa sociedade de consumo, ninguém parece ter mais dúvida. Da mesma forma, sabemos que este consumo não se limita somente a mercadorias como sabão em pó, sapatos, pipocas de microondas e lapiseiras, estendendo-se também a produtos culturais como livros, discos e filmes.

De fato, o fenômeno do consumo cultural é um tema caro aos estudiosos da comunicação, porém parece ainda não ter sensibilizado um número expressivo de sociólogos, que grande parte das vezes se limitam às análises sobre o fetichismo da mercadoria e a consequente "relação fantasmagórica entre coisas" descrita pelo velho Marx no Capital.




Os poucos que se aventuram por esta seara procuram destacar, assim como seus colegas da comunicação, as relações que percebem entre consumo e identidade. Fredric Jameson, por exemplo, vê a “cultura do consumo” presente em nossa vida cotidiana e parte integrante do tecido social. Já Nestor García Canclini, um sociólogo que também navega por estudos antropológicos e da comunicação, defende que “ao consumir também se pensa, se escolhe e reelabora o sentido social”, enfatizando os vínculos entre consumo e cidadania.



Desde os anos 70, pesquisadores do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), na Inglaterra, perceberam que a construção identitária juvenil está baseada na apropriação peculiar – e muitas vezes ressignificada – de objetos providos pelo mercado e pela indústria cultural, imprimindo-lhes novos significados. No mesmo diapasão, o sociólogo brasileiro Renato Ortiz enxerga os produtos da cultura de massa, dentre eles o rock n’roll, a guitarra elétrica e os pôsters de artistas (ou mesmo de Che Guevara), como “cartelas de identidade”, que intercomunicam os indivíduos dispersos no espaço globalizado. Segundo o autor, “da totalidade dos traços-souvenirs armazenados na memória, os jovens escolhem um subconjunto, marcando desta forma sua idiossincrasia, isto é, suas diferenças em relação a outros grupos sociais”.



Na contemporaneidade, a construção de estilos de vida passa a ser caracterizada não apenas pelo cultivo interno, mas também pelo abastecimento de repertórios culturais diversos – termo de Canclini – que são resultantes dos novos processos de interação inerentes à chamada globalização. Esta suposta democratização cultural, incensada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, passa a interferir na construção da identidade dos diferentes grupos citadinos, especialmente entre os jovens, que têm como prática a formação de “tribos”, bandos, gangues e galeras, não raro ligadas a determinados estilos musicais e modos espetaculares de aparecimento.



A observação empírica me faz crer que a música é a forma de arte que mais influencia as construções identitárias dos grupos juvenis. É principalmente a estilos musicais específicos, e não a livros, filmes, quadros ou peças de teatro, que as pessoas acabam recorrendo (intencionalmente ou não) na hora de construir uma personalidade própria ou aderir a um grupo específico. É – e digo sem muita dúvida – através de estilos musicais que as “cartelas de identidade” se mostram mais evidentes.



E, na moral, quem é que nunca se vestiu, em algum momento, tal qual um típico metaleiro, forrozeiro, funkeiro, blueseiro, micareteiro, reggaeiro, sambista, hip-hopper ou raver? Na maioria dos casos, a menor distância entre uma pessoa e seu gosto musical é um spike, uma sandália rasteira, um chapéu de palha, um abadá, um par de óculos escuros gigante ou um gorro bordado com uma folhinha de canabis sativa.

12 comentários:

Diogo Lyra disse...

Pois é, mas o que se esconde por trás de generalizações como essas?

Funkeiro = favelado; rockeiro = jovem revoltado; reggaeiro = maconheiro; metaleiro = tijucano com baixa auto-estima; sambista = moderninho que só sobe a favela pra comprar pó.

Na verdade a música - ou o estilo musical - definem ou caricaturam ASPECTOS SOCIAIS, sendo, portanto, mero recurso de dissimulação dos estigmas mais abrangentes.

Ora bolas, se o Manoel Carlos coloca a bossa nova em suas novelas, a identidade que ele quer afirmar não é a do "bossanoveiro" mas sim do cidadão carioca, classe média alta, com gosto refinado e saudoso dos bons tempos. Da mesma forma, no caso do funkeiro de hoje, a identidade subentendida não é a do apreciador de funk, mas sim de um jovem de parcos recursos financeiros e intelectuais, chegado à violência e promiscuidade.

Pra mim os rótulos de identidade resumem de forma mais ou menos dissimulada a carga valorativa desse personagem social no seu meio e, sobretudo, no seu tempo.

Claro que a música possui um aspecto de identidade fortíssimo, mas nunca quando ele é transposto para definir alguém. A música é identidade na medida em que é narrativa e memória, mas perde essa característica quando utilizada para definir e enclausurar determinados grupos.

Veja que, nas décadas de 60 e 70, por exemplo, não era o estilo musical o grande elemento definidor da sociedade, mas sim sua visão política em sentido amplo. Os hippies, os conservadores, os esquerdistas, comunistas e revolucionários em geral. E mesmo dentro desses grupos encontramos novas divisões ou rótulos também voltados ao pensamento político: marxistas, leninistas, troscos, maoístas e por aí vai.

Mas isso é só minha opinião de merda, como bom micareteiro que sou...

4rthur disse...

Digas, independente de até que ponto concordo, fico muito feliz em te ver de volta aos grandes comentários. A reflexão e a troca de idéias que rola por aqui depende mesmo disso.

grande abraço.

gigi disse...

Sexta-feira, me chamaram de indie no samba. O pior é que estou até agora sem entender.

beijomeligagato.

Paulo Bono disse...

muito bom, arthur.
certamente a preferência por um estilo musical diz quase tudo sobre essa pessoa. embora eu ache que não deveria ser assim.
grande abraço

Unknown disse...

Amores meus, saudades eternas de uma quase gonsalense... mas vamos aos fatos...

concordo com o diogo em tudo, ou quase tudo. Falar de identidade é uma coisa muito forte e fico pensando na trajetoria de vida das pessoas... sei la, eu amava rock na adolescencia, portanto era roqueira, vestia preto, raspei a cabeça, era fã dos guns & roses... o tempo passou, tive uma breve passagem pelo axé (tá bom, não torçam o nariz, ninguem é perfeito e isso tem mto, mto tempo, rs), e depois sei la... forro, samba, maria bethânia. Agora eu pergunto: qual a minha identidade? Será que eu sofro de multipla personalidade? ou de repente, é pra eu me sentir em crise de identidade?

Assim com o meu caro amigo diogo essas classificações generalistas me incomodam bastante, apesar da gente teimar em usar, principalmente nas nossas falas cotidianas, mas como não somos apenas pessoas que batem cartão do ponto no fim do dia, devemos parar pra pensar no teor e na metodologia dessas nossas conversas, textos e afins...

adoro a minha ligação com vcs, seres viventes e pensantes, me sinto mais feliz e mais inteligente quando leio posts e comentários como o de vcs.

arthur, a saudade é eterna, e a foto do jantar arabe me tirou o sossego, mas como uma boa libanesa que sou, qq dia marcamos um quibe cru completo, e pra mim, promessa é dívida! pode cobrar!

beijos malinowskianos,

Hi

Diogo Lyra disse...

Aí Doutor, linkei os principais endereços do ERRATA no FQL, mas não entendi pq você só colocou duas músicas no Myspace! Vale muito a pena fazer uma referência à página do Detonautas tb...

Let's disse...

O primeiro comentário do Diogo, pra mim disse muuuuito...

os jovens querem ser diferentes, então deviam criar o seu próprio estilo, a sua roupa, criar a sua música! e não comprar cds e camisetas de tal banda "pois queria ser como eles"

a industrialização pode acabar com a criatividade! antes, quase todos sabiam costurar, sabiam carpintar,,, agora até pra levar o cachorro pra passear é preciso contratar um personal "andador de cachorro"...

Anônimo disse...

Jo me retuerço tuedo en la cueva todas las vezes que vendem a un jovem una camiseta com mi retratito sin falar en los movimientos esdudantis.Está na hora de alguém assumir mi puesto nessas transaciones capitalistas, comerciales!

Anônimo disse...

Menino, é não é que eu era doida para me vestir que nem a Madonna nos anos 80? Ainda bem que isso passa. Hoje, vejo essa garotada vestida de palhaço - leia REBELDES - me dá uma dó... Gostei do blog, te achei lá no sítio no Paulo Bono. Beijos e até.

Vivi disse...

Bom, eu acho que o termo mais apropriado seria cartelas da falta de identidade: os que fazem uso delas (adolescentes na maioria?)na verdade, como ainda não se reconhecem como "mosaicos" que somos, sujeitos fragmentados, buscam no rótulo obtido via gosto musical e vestuário algo que dá a ilusão de "pertencer a", "fazer parte". Também já vivi essa fase, mas respeitando minha aversão ao calor escaldante, não me cobri de preto, nem calcei coturnos. Hoje creio que meu modo de me vestir carrega mais informações sobre mim, embora estejam mais implícitas.

Samantha Abreu disse...

nossa... eu já fui tantas, já virei tantas esquinas...
mas isso é bom, enche a gente de história, de experiências e de vida.

O problema, como o Diogo disse, é a generalização. Por isso, quando se vive quase tudo (ou se tanta viver, pelo menos) a gente passa a ver as coisas por outros ângulos.
E tudo fica muito mais bonita.

Cultura é cultivar.
Seja lá o que for, cultivemos.

beijos!

Jana disse...

vc já sabe o que a frô acha disso. a relação de consumismo e identidade, não é só um fetichismo é uma espécie de narcisismo como narcose.

As pessoas procuram sua imagem e semelhança em discos, filmes, livros, roupas etc. tornaram-se fascinadas por qualquer extensão de si em qualquer material que não seja o delas próprias, que mergulharam num estado de entorpecimento.