terça-feira, maio 29, 2007

Sobre o consumo de funk pela classes médias e altas



Amanhã viajo para o Recife, por ocasião do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia – o que provavelmente me deixará ausente do blog até semana que vem. Como o tema (citado no título) tem grande proximidade com as coisas que geralmente discuto aqui, resolvi esplaná-lo de maneira breve, pra que o astuto leitor, se assim desejar, possa dar sua opinião. O texto, na íntegra, deverá ser publicado na página do Congresso.



A opção pelo tema é resultado de uma observação e de um desconforto. A observação é a de que o funk se encontra cada vez mais presente nos redutos das classes médias e altas, como boates localizadas nas áreas nobres da cidade, happy hours do centro da cidade, eventos que ocorrem nas grandes casas de show (como o baile Skol que está sendo anunciado), chopadas de faculdades e academias de ginástica.


O desconforto vem do fato de que alguns estudiosos do tema estão apressando-se em enaltecer o funk como elemento de integração. Ou seja: a partir do momento em que a classe média começa a consumir o funk, ele deixaria de ser um “símbolo de estigma” para tornar-se um “símbolo de prestígio” (categorias usadas por Goffman).


Só para citar um dos exemplos mais exaltados, a autora Jane Souto, no livro Galeras Cariocas (organizado pelo antropólogo Hermano Vianna), afirma que movimentos como o funk “rompem fronteiras de classe e de cor”, defendendo que, nos bailes funk, “com jovens de classe média, partilha-se da mesma dança, do mesmo som, de um mesmo repertório de gírias, de uma mesma emoção, de um mesmo habitus social”.


Uma visão lúdica, poética até, mas distante da realidade. O que move este tipo de opinião apressada é o fato de que o funk, que é “som de preto, de favelado” (como cantam Amilcka e Chocolate), está sendo ouvido pela playboyzada. E será que isso garante algum tipo de integração, ou pelo menos um recrudescimento das distâncias sociais? Será que isso aproxima “morro” e “asfalto”? Creio que não.


Alguns artigos relevantes já foram escritos sobre o consumo e apropriação de repertórios musicais do Nordeste por segmentos da classe média carioca. Cássio Soares, ex-colega de classe, no artigo Uma pequena burguesia Folk? Ou do papel da cultura popular no imaginário urbano juvenil de classe média carioca, e Claudia Rezende, em Os limites da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na Feira de São Cristóvão, revelam que a cultura do outro, quando apropriada por estes grupos, tende a ser ressignificada e reformatada para ser consumida apropriadamente. E será que não é isso que ocorre com o funk também?


Vamos aos fatos. Tive poucas oportunidades de realizar trabalho de campo até agora (pretendo continuar com minha pesquisa quando voltar do Congresso), mas alguns dados preliminares colhidos em entrevista já são bastante reveladores. As opiniões citadas abaixo referem-se a conversas que tive com alguns jovens, de 19 a 23 anos, na porta de um evento exclusivo de música funk um uma casa de espetáculos no centro do Rio, cujo preço da entrada (40 reais, 20 pra estudante) e o das bebidas (3 reais o refrigerante e 4 o copo plástico de cerveja) já dá uma dica de quais segmentos socioeconômicos estamos falando.


Primeira observação: os bailes de comunidade não são freqüentados pelos jovens entrevistados. Apenas uma jovem, de 23 anos, afirmou ter ido a mais de um baile dentro de uma favela, quando era menor – coisa que já não faz mais. Uma das outras entrevistadas, de 18 anos, justifica:


“lá [na favela] os riscos são muito maiores de qualquer outro lugar, assim, que a gente tá acostumado a ir, sabe, em uma noite, você ir, pode acontecer milhões de coisas, sabe? Também pode acontecer, vamos supor, aqui, mas o risco é bem menor”.


O receio quanto à insegurança nas favelas, relacionado à presença de traficantes de drogas armados nestes espaços, acaba por interferir na visão dos entrevistados em relação a toda a população local. Isto fica claro quando uma das jovens, de 17 anos, diz que “teria medo” de relacionar-se afetivamente com um morador de comunidade pobre. Outra entrevistada, de 18 anos, revela que “se vier uma pessoa da comunidade pra cá hoje e tal, pra ‘ficar’, tranqüilo, mas, assim, pra namorar eu já não sei”. A jovem de 23 anos, por sua vez, é taxativa: não “ficaria” com alguém da favela, pois “são feios e mal arrumados”.


Outra coisa que pude observar é que a identificação dos entrevistados com o funk é muito mais relacionada à “batida” e ao “som” do que propriamente às letras das músicas e ao estilo. Com exceção de um rapaz entrevistado, todos afirmaram não se identificar com o rótulo de “funkeiros”. Quando perguntados sobre o que seria o “estilo funkeiro”, uma jovem responde:


"pode existir aquele negócio ‘tchutchuca’, aquele negócio que, tipo assim, eu acho horrível, entendeu, porque, tipo assim, é aquele tipo de mulher que dança e não se importa com a letra, que a gente fala assim, ‘pô!’, bota a roupa realmente pra se vulgarizar, sabe, o que não é o nosso caso, sabe, a gente vai pro funk mas nunca vai botar um shortinho e tal" (grifos meus).





Ou seja: a ampla utilização de atributos pejorativos para a descrição do baile de comunidade (perigoso), “homem da favela” (perigoso, feio, mal-arrumado) e “mulher funkeira” (vulgar), além da necessidade de afirmação do distanciamento do que seria o “estilo funkeiro”, impedem que se veja algum tipo de potencial integrador no consumo de funk pelas classes médias e altas. Ao contrário, as opiniões emitidas pelos jovens entrevistados parecem, antes, reforçar a utilização do campo cultural como espaço simbólico de reafirmação das distâncias sociais.

19 comentários:

Anônimo disse...

Perfeita sua análise. É o que sempre pensei. A classe média, por não ser produtora de cultura, está sempre se apropriando do que é feito nas camadas populares. Mas, como é de seu feitio, se apropria do objeto e lhe dá outras significações para que possa se adequar ao seu modo de vida. Não há nenhum indício de integração nos bailes funks promovidos na zona sul carioca. Mesmo Tati Quebra Barraco, depois que passou a ser a queridinha das patricias cariocas, amenizou o seu discurso - antes radicalmente contrário aos caprichos e costumes da burguesia. Enfim, é aquele velho papo de dominação que daria um tratado e não é o caso estender o assunto agora. Putabraço!

Anônimo disse...

oi 4rthur:

só lembrando:

o funk carioca é também produto da reformatação/resignificação do Miami Bass, que é reformatação/resignificação de várias outras coisas...

claro que quando ao ser reformatado/resignificado pela classe média vai se transformar em outra coisa, bem diferente...

alguns links interessantes, realcionados com este assunto:

este aqui eu também descobri hoje:

http://wayneandwax.com/?p=143

e tem este outro, mais antigo:

http://blissout.blogspot.com/2005_03_01_archive.html#111021027244841135

abraços e bom congresso!

gigi disse...

puta que pariu... nem consegui ler, mas já estou possuída. aguarde meus comments. mexeu com a menina dos meus olhos!

Diogo Lyra disse...

Gostaria de um texto maior, mas depois que o "bonde do tigrão" voltar da SBS eu pego a versão final...

Madame S. disse...

muito muito muito bom
nunca tinha parado pra pensar nesse ponto, da realidade dessa pseudo integração social tão pregada por aí.
Acho que sua pesquisa já está rendendo um ótimo trabalho

certa vez escrevi um pouco sobre o tema, perdi o hábito de escutar funk, mas acho que continuo mantendo a opinião...
http://mulhersubjeto.blogspot.com/2006/08/sobre-funk-preto-manso-e-um-discurso.html

um grande abraço e uma boa viagem a Recife, a melhor de todas as terras...

Anônimo disse...

Ah, sai dessa Sr. Absurdo (o nome diz tudo), o funk é um lixo, uma mácula social desavergonhada e incitadora da violência. Pelo menos 90% dos assaltantes são funkeiros, o que me leva a crer que funk = crime.

Cascarravias disse...

em casos assim, o termo "apropriação" é bastante adequado, especialmente se interpretado em seu significad o econômico.

a apropriação é o próprio processo de mercantilização da expressão cltural em questão. isso reuqer necessariamente pasteurização e adaptação ao `consumidor médio`.

definitivamente o consumidor médio não tem grandes pretensões de transformação na estrutura social dada sua cômoda posição... média

tchuros, já apresentou alguma coisa na SBS? nao volta muito triste não, é ruim mesmo.

Anônimo disse...

Arthur, adorei o texto, tomara que vc possa continuar a pesquisa. É muito legal poder sair do senso comum, por vezes meio deslumbrado (do qual já fiz parte, admito) de que qualquer novo elemento pode criar pontes de verdade entre mundos tão distintos e historicamente cheio de preconceitos mútuos. Acho que pontualmente, o diálogo e a aproximação pode ocorrer, mas, na estrutura...
Bjos
Pat

Anônimo disse...

Arthur, parece que o mistério do samba anda dançando em outros salões.
O que acontece hoje como funk não é muito diferente do que foi com o samba. A partir do momento em que essa música passa a ser consumida por uma classe média/alta, ela passa a ter um outro valor, quase que civilizatório. O samba de perseguido, vira ritmo nacional. Só que o país é muito maior do que o Rio e samba é muito mais do que toca nas vitrolinhas dessa galera que não sua, não sabe o que é mocotó e acha que pérola negra é coisa da H.Stern ou, quando muito, música do Luiz Melodia.
Feliz jornada nesse caminho da pesquisa.

blah disse...

Adorei a análise, arthur, concordo 100%...

Mudando de asunto, pelo visto vc tava certo, a danação resolveu perseguir a nós todos...

Samantha Abreu disse...

Oi!
Arthur... adorei.
sabe aquela história de uma coisa que se repete, se repete, se repete...?

foi assim na moda do lixo é luxo.
foi assim com o rep dos Racionais, em carros importados e playboys 'pagando' de rapper pra dar tom de revoltado social.

Com o Funk é a mesma coisa, e não é de agora.
A classe média se apropria de tudo o que 'choca' (mesmo que já tenha sido criado por outros), mas não aceita o risco. Não desce do salto.

ê mundo velho!
nada se cria...

Luiz Antonio Simas disse...

Concordo inteiramente e gostaria de ler o texto integral. Pena que foi o Hermano Vianna, e não você, que escreveu o Mistério do Samba.
abraço

Cascarravias disse...

tenho certeza que se tivesse sido o tchurows o autor, tinha ficado bem escrito.

Vivi disse...

Muito interessante seu trabalho...Lembrei que numa novela da Globo havia uma personagem rica que passou a frequentar os bailes, arranjou uma amiga da periferia...Pois é, o discurso da mídia tem um quê de democrático mais ou menos como quem diz "vamos dar espaço à diversidade de linguagens, de expressões. É a galera dos morros ganhando o mundo!"(O DJ Marlboro, aparece muito na TV e diz levar o funk inclusive pra Europa) Bom, isso porque as letras não são fáceis de entender nem mesmo para brasileiros...

gigi disse...

Turos, eu fico doente quando começam a falar sobre funk. Doente mesmo, como um torcedor fanático ficaria se um senso-comum qualquer entrasse numa de falar sobre seu time. Acho que ninguém está suficientemente calçado pra falar sobre o natural do Rio. Já conversamos sobre isso longamente, e eu não quero ficar arrotando experiência e vivência no tema porque acho podre... mas realmente, não dá pra negar que não é um burguesinho safado que curtiu matinê de Tijuca Tênis Clube que vai vir bater boca comigo sobre funk.

Eu não sei de onde tiraram essa idéia de falar do pancadão como elemento de integração. Não é e nunca vai ser... principalmente porque o que é produzido no funk pertence a um universo muito particular, a uma realidade feia e desdentada que não interessa à classe mérdia que o 'consome'. Não existe esse interesse na realidade do outro, sabe... Acho que as letras do funk impactam a classe mérdia de forma catárstica... É o mesmo efeito que o cômico tem... eu rio pq quem se fode é ele, não eu... eu rio porque ele é o inadequado, o não adaptado à sociedade... eu sou bonitinho, fofinho e nos conformes. Bem... isso tudo tá lá no Bergson.

Eu fico realmente doente com essas elocubrações infundadas.

Amei o seu texto e queria muito quebrar um pau aqui, mas o dever me chama.

beijocas.

gigi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gigi disse...

Vivi, não entendi o que vc quis dizer. E a última frase? Qual é a relação com o resto do comentário?

bjs.

Vivi disse...

Gigi, quis dizer, com meus argumentos recheados de senso comum, o que você disse brilhantemente! O discurso da mídia se refere, muitas vezes, a essa suposta integração. E o fato de o funk do DJ MARLBORO atravessar o oceano, não quer dizer nada. Creio que a aceitação do funk internacionalmente deve ser da mesma natureza que a aceitação que ocorre pela classe média tupiniquim. Perdão se fui confusa...

gigi disse...

Aahhhhn, entendi, Vivi!!! É isso msm!

beijocas