Caso um neófito em história brasileira republicana se proponha nela mergulhar, com o intuito de desvendar o período em que a questão da identidade nacional começa a ser abertamente estruturada por intelectuais, artistas e até mesmo autoridades governamentais do país, encontrará seguramente nas décadas de 1920 e 1930 a sua fase mais frutífera. Tendo a abolição da escravatura e a proclamação da República como processos recentemente deflagrados, o Brasil do início do século XX procurou, através do movimento modernista, estabelecer um novo tipo de diálogo com as informações irradiadas dos países centrais.
Nesta época, as influências externas que chegavam ao Brasil estavam relacionadas ao processo civilizador pelo qual nações como França e Inglaterra haviam recentemente atravessado em suas conjunturas internas. Uma vez visto como completo e terminado pelas sociedades européias em seu próprio seio (especialmente no e após o século XIX), o conceito de civilização se transforma em justificativa para a conquista e dominação de povos não-europeus, vistos como incivilizados e, portanto, inferiores, da mesma maneira como a aristocracia da corte se enxergava perante os outros estratos sociais que a rodeavam.
Se a civilização tinha a Europa como centro, o ingresso do Brasil nos tempos modernos, especialmente após o advento da República, implicava a imposição de um modelo de civilização que excluía a diversidade brasileira, pois que calcado na experiência européia. O endeusamento do modelo civilizatório, notadamente parisiense, crescia durante as primeiras décadas do século XX, em detrimento da mistura de tradições que caracterizava a sociedade brasileira.
Neste período, conhecido como a belle époque carioca, a postura da elite (especialmente no Rio de Janeiro, então capital da República) era a de negar qualquer manifestação da cultura popular, o que era feito através da expulsão dos pobres e portadores de heranças culturais tradicionais dos centros (o que ocorreu no Rio através das reformas do prefeito Pereira Passos no panorama urbanístico do centro da cidade, na década de 1910) e da tentativa de erradicação das religiões afro-brasileiras e do controle policial das festas carnavalescas.
Tal visão elitista, como fica claro, encontrava-se impregnada de valores construídos de fora para dentro, resultante de um grande torcicolo cultural que denunciava o papel central de países estrangeiros na constituição do caráter nacional do Brasil. Com efeito, o vírus do recalque só acharia um antídoto, ao menos no plano cultural, a partir da fruição intelectual ocorrida no movimento Modernista.
Não irei aqui me deter nas idiossincrasias do Modernismo, uma vez que tal esforço exigiria a redação de um novo artigo (o que provavelmente farei em outra oportunidade). O importante, neste momento, é frisar que os modernistas brazucas procuraram valorizar um olhar introspectivo em relação à sua própria cultura, sem que a proposta de um contato mais direto com as particularidades brasileiras fosse revestida de um caráter exótico e cerrado, cientes que estavam da necessidade de alinharem-se à marcha de modernidade e progresso, símbolos da civilização européia que aqui se fazia impor.
O ponto é que, desde então, a discussão entre o que é parte da “cultura brasileira” e o que seria “influência externa” tem alimentado discussões em salas de aula, pátios de faculdades, mesas de botequins. Enquanto Mário de Andrade, na década de 20, não via com bons olhos a proposta oswaldiana de absorver influências externas – cioso da possibilidade de descaracterização da nossa cultura – , o crítico José Ramos Tinhorão, quase 50 anos depois, chegava ao ponto de ver na Tropicália de Gil e Caetano um plano para impor a dominação cultural estadunidense (afinal, aqueles baianos estavam botando roquenrol na bossa-nova, que porra é essa?).
Pra não dizerem que estou exagerando, vejam o que o cara escreveu:
“Alinhados com o pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”, os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resistência e, partindo da realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do governo militar de 1964 no plano político-econômico. Ou seja, a tese de conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país” (Tinhorão, História social da música popular brasileira, p. 324-325).
Com o movimento Mangue não foi diferente. A peleja entre Chico Science e o escritor Ariano Suassuna, Secretário de Cultura de Pernambuco entre 1995 e 1998 (durante o governo de Miguel Arraes), resultou em frases como esta, dita por Suassuna a Chico:
“Você está servindo de ponta-de-lança para os piores inimigos do Brasil, aqueles que tentam descaracterizar a nossa cultura. Mude o nome de Chico Science para Chico Ciência que eu subo no palco do seu lado”.
Ou seja, existe um claro embate cultural travado há quase cem anos no Brasil (e também alhures) entre os que assumem uma postura “purista”, de defesa da legitimidade da cultura brasileira, e os que promovem a livre imbricação entre as culturas.
Nesta época, as influências externas que chegavam ao Brasil estavam relacionadas ao processo civilizador pelo qual nações como França e Inglaterra haviam recentemente atravessado em suas conjunturas internas. Uma vez visto como completo e terminado pelas sociedades européias em seu próprio seio (especialmente no e após o século XIX), o conceito de civilização se transforma em justificativa para a conquista e dominação de povos não-europeus, vistos como incivilizados e, portanto, inferiores, da mesma maneira como a aristocracia da corte se enxergava perante os outros estratos sociais que a rodeavam.
Se a civilização tinha a Europa como centro, o ingresso do Brasil nos tempos modernos, especialmente após o advento da República, implicava a imposição de um modelo de civilização que excluía a diversidade brasileira, pois que calcado na experiência européia. O endeusamento do modelo civilizatório, notadamente parisiense, crescia durante as primeiras décadas do século XX, em detrimento da mistura de tradições que caracterizava a sociedade brasileira.
Neste período, conhecido como a belle époque carioca, a postura da elite (especialmente no Rio de Janeiro, então capital da República) era a de negar qualquer manifestação da cultura popular, o que era feito através da expulsão dos pobres e portadores de heranças culturais tradicionais dos centros (o que ocorreu no Rio através das reformas do prefeito Pereira Passos no panorama urbanístico do centro da cidade, na década de 1910) e da tentativa de erradicação das religiões afro-brasileiras e do controle policial das festas carnavalescas.
Tal visão elitista, como fica claro, encontrava-se impregnada de valores construídos de fora para dentro, resultante de um grande torcicolo cultural que denunciava o papel central de países estrangeiros na constituição do caráter nacional do Brasil. Com efeito, o vírus do recalque só acharia um antídoto, ao menos no plano cultural, a partir da fruição intelectual ocorrida no movimento Modernista.
Não irei aqui me deter nas idiossincrasias do Modernismo, uma vez que tal esforço exigiria a redação de um novo artigo (o que provavelmente farei em outra oportunidade). O importante, neste momento, é frisar que os modernistas brazucas procuraram valorizar um olhar introspectivo em relação à sua própria cultura, sem que a proposta de um contato mais direto com as particularidades brasileiras fosse revestida de um caráter exótico e cerrado, cientes que estavam da necessidade de alinharem-se à marcha de modernidade e progresso, símbolos da civilização européia que aqui se fazia impor.
O ponto é que, desde então, a discussão entre o que é parte da “cultura brasileira” e o que seria “influência externa” tem alimentado discussões em salas de aula, pátios de faculdades, mesas de botequins. Enquanto Mário de Andrade, na década de 20, não via com bons olhos a proposta oswaldiana de absorver influências externas – cioso da possibilidade de descaracterização da nossa cultura – , o crítico José Ramos Tinhorão, quase 50 anos depois, chegava ao ponto de ver na Tropicália de Gil e Caetano um plano para impor a dominação cultural estadunidense (afinal, aqueles baianos estavam botando roquenrol na bossa-nova, que porra é essa?).
Pra não dizerem que estou exagerando, vejam o que o cara escreveu:
“Alinhados com o pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”, os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resistência e, partindo da realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do governo militar de 1964 no plano político-econômico. Ou seja, a tese de conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país” (Tinhorão, História social da música popular brasileira, p. 324-325).
Com o movimento Mangue não foi diferente. A peleja entre Chico Science e o escritor Ariano Suassuna, Secretário de Cultura de Pernambuco entre 1995 e 1998 (durante o governo de Miguel Arraes), resultou em frases como esta, dita por Suassuna a Chico:
“Você está servindo de ponta-de-lança para os piores inimigos do Brasil, aqueles que tentam descaracterizar a nossa cultura. Mude o nome de Chico Science para Chico Ciência que eu subo no palco do seu lado”.
Ou seja, existe um claro embate cultural travado há quase cem anos no Brasil (e também alhures) entre os que assumem uma postura “purista”, de defesa da legitimidade da cultura brasileira, e os que promovem a livre imbricação entre as culturas.
Pessoalmente, considero os dois lados discutíveis, pois se há algo de nocivo na irrefletida absorção de elementos culturais externos, por outro lado acho um tanto complicado recorrer a uma suposta “legitimidade” cultural tupiniquim – e assim como Alfredo Bosi, me recuso a ver a “cultura brasileira” assim, no singular, preferindo pensar em “culturas populares” de forma plural.
19 comentários:
Purismo = babaquice.
Viva (o esquecido) Gilberto Freyre, um dos maiores protagonistas do Brasil, vanguardista mais que modernista, tropicalista mais que intelectual.
Viele Grüße,
Diogo Lyra.
Globalização é isso!
Mas me desculpe, Daniel, o único alemão que eu entendo é o milionário paulista que gosta de comer frutos do mar.
malditos modernos!
malditos caranguejos re-significados do mangue!
malditos puristas!
malditos miscigenates!
bavaria motorsport wagen!
liebfraumilch!
ort und zeit!
die toten hosen!
das kapital!
gründrisse!
Eu não gostar das ingleses e franceses com este historria de civilizaçón.
Quem tem kultur tem meda!
eu nao gosta dos alemaes com essa papinho de culture. bom é brazil e a sifilização
Bom, deixando de lado as bobeiras alheias, quem se interessar pelo tema da postagem e quiser se aprofundar na questão "Ariano Suassuna" (que foi recentemente eleito novamente Secretário de Cultura de Pernambuco, vejam só!) recomendo o sugestivo artigo "Arriando Minha Sunga", disponível no Overmundo:
http://www.overmundo.com.br/overblog/arriando-minha-sunga
Isso, Arthur! Só vc foi sagaz pra perceber – ou foi o único que explanou – que inverti a ordem do lance do Dioguinho.
Acho que vc poderia retirar essa notinha explicativa sobre o título. Foda-se quem não conhece o Manifesto Antropófago. Fica mais divertido pra quem conhece e melhor ainda pra quem ignora, pq vai te achar um gênio. E pq Zizas?
Vou ler o post e depois comento a respeito.
beijinhos
Se liga... ninguém me pede verificação de letrinhas pra escrever aqui. Pq no meu tem isso?
Pq o blog do Diogo é todo fodão e o meu é o default? Não quero.
bj
Taí Arthur...
Eu como amante da música acho essa discussão muito interessante. Acho que a capacidade dos brasileiros de absorver e transformar o que veio de fora gerou uma variedade de sons ainda mais rica...
Em termos de música, eu sou a favor de misturar tudo mesmo, mas o que me deixa triste, não é em relação à música e à arte, e sim em relação à cultura como povo, comunidade (percebe a sutileza dessa diferenciação que eu fiz?).
Infelizmente o brasileiro não tem uma unidade como povo, tem sim, lindas manifestações da influência africana, italiana, alemã, etc, que com o tempo deram a identidade "brazuca", mas falta ao brasileiro um sentimento de unidade como POVO mesmo... Não sei se estou conseguindo me expressar, não sei se vcs vão entender o que estou tentando dizer...
Abs
Essa questão da "unidade" é complexa, Revolto. Quem gosta desse papo de unidade é o Getúlio Vargas e a Rede Globo, que até uniformizar o sotaque ela quer.
Vejo esses projetos unificadores com muitas ressalvas, e é por isso que eu falei em "culturas brasileiras", no plural. Não acho que o povo brasileiro seja uniforme, e nem gostaria que fosse. É muito bom poder viajar sem sair do país (nem que seja sem sair do lugar, através dos livros, dos discos, das iguarias e de sei-lá-mais-o-quê) e descobrir vários brasis dentro do mesmo território nacional. Fronteira é um troço que tem a ver com política, e a cultura não respeita as mesmas fronteiras que definem um Estado ou uma nação.
O brasileiro só se identificou com o samba como "música nacional" a partir do seu Gegê. Mas cada região (no sentido literal da palavra, e não no geopolítico) tem seu sotaque musical - tanto é que existem centenas de ritmos catalogados de norte a sul do país. Então, se você pensar bem, vai ver que esse troço de unidade é matéria que não nos faz falta... a não ser que estivéssemos falando de unidade de direitos, unidade de oportunidades, unidade de salários... pronto, já virei um utópico!
Grande abraço, L.
e nossa cultura, assim, no singular, já não é cheia de diferenças, significados e lados?
pra quê rótulo, se no final, ele não passa de rótulo?!
amo a cultura pluri-brasileira, com todas as suas vertentes. Defendo-a árduamente. Mas de onde vem uma cultura senão de outras? e se é assim, porque ignorar essas outras também tão ricas?
Ah, quer saber! o négocio é gostar do que se gosta. Sem bandeira!
Uma vez assisti a uma palestra maravilhosa do Ariano Suassuna lá na Universidade. Ele disse mais ou menos assim
(achei no goooogllleee!!!!)
cof cof
"Às vezes as pessoas dizem que eu sou xenófobo. Eu não tenho nada contra nenhuma cultura de nenhum país, mas a cultura verdadeira. Agora, essa cultura média e medíocre de massas que tentam fazer o "belo" abaixo da gente, essa não. Essa tem que ter paciência. O povo pensa que eu tenho horror à cultura americana. Eu tenho horror à invasão do Iraque. "
" Então, eu não tenho nada contra ninguém, o que eu quero é fortalecer a nossa cultura porque aí qualquer coisa que nos venha de fora, em vez de ser uma influência que nos esmaga, que nos descaracteriza, que nos corrompe, passa a ser uma incorporação que nos enriquece."
SALVE, ARIANO!!!
Mas será que a cultura brasileira não é forte o suficiente? Será que o Chico Science estava mesmo servindo de "ponta-de-lança" para os interesses dos inimigos do Brasil? Ou será que a banda do Chico, ao botar guitarras na música regional, revelou a riqueza da tradição musical pernambucana para diversos recônditos do Brasil?
nao gosto da conversa de multis e correlatos. prefiro pensar em produção cosmo0polita. e sim, o cosmopolita tb tem sua vertentes hegem,ôniocas e subordinada... não que sejam estrutturas estanques e inertes, mas que continuam reproduzindo os que mandam e os que obedecem, isso continuam.
não foi só com guitarras e distorções que os mangue boys fortaleceram o dominador não. foi com a reprodução de um padrão mtv de banda de música. com o videoclip, a gravadora, a estrutura toda de shows, turnes midia. mercado fortalecido, publico frenetico, critica embasbacada, executivos e acionistas satisfeitos.
Pois é, Ariano Suassuna foi pra além de Tinhorão, também criticou a Tropicália, e até mesmo a Bossa Nova, pela influência do jazz. Mas o Armorial também faz suas misturas. A questão é que misturas são feitas. Se a contribuição for ibérica, tudo bem pra Suassuna. Mas se não, é imperialismo por um lado, subserviência, por outro.
No entanto, pelo que eu entendo, em nenhum dos movimentos citados (Modernismo, Tropicalismo e Mangue), houve uma "absorção irrefletida de elementos culturais externos", mas incorporação de elementos cultuarais diversos, sejam brasileiros ou não. E cultura é isso! Afinal estamos no mundo!
Germans? Where the fuck did those Germans come from? Arthur, you have truly gone INTERNATIONAL with this one!
Well written article too. I have a serious problem with this whole topic though. It seems like some anthropological debate. These artists and cultural icons do not belong in a fuckin' zoo to be dissected and bisected.
"...over here we have the sub-species known as puris bossa novas and over there is puris sambas carnavales... let us further examine their peculiar properties and origins of being...blah blah blah...."
Who the fuck cares? The stuff is genuine and really fuckin' beautiful, man! Let's celebrate it and demand more!
Gotta agree with Cascarravias once again with this one. FUCK PURITY! Mix it up and see what happens next!!!!
Fuck YOU, ass-hole!
message to alternative-me...fuckin' "sacanajeiro"! Hahahahahahaha!!!!! You know this type of shit only encourages me. Gay? Oh god how I wish! Oh how I envy thee!!! You have no idea. I curse the gods for making me hetero-sexual...
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