Na minha humilde opinião – e há quem concorde comigo –, ocorre com o funk carioca fenômeno semelhante àquilo que outrora se deu em relação ao samba. Explico:
Quando do prenúncio do século XX, o samba era essencialmente executado e ouvido em uma área geográfica específica – a Cidade Nova, na época conhecida como Pequena África. As casas das “tias” baianas que habitavam esta área se transformavam em verdadeiras escolas musicais, onde negros ex-escravos e seus filhos praticavam uma curiosa mistura do lundu africano e do maxixe europeu, mistura essa que foi adquirindo estilo próprio até consolidar-se como samba.
Indissociável da cultura dos escravos recém libertos, o samba não raro era visto pelas autoridades como “a música de negros e vadios”, o que complicava a vida de qualquer um que perambulasse pela cidade com um violão debaixo do braço. Mesmo na casa das tias, em dias de festa, cabia ao samba apenas o espaço da cozinha e dos fundos, enquanto o choro, dotado de maior prestígio, ocupava a sala de visitas – conforme depoimento de Pixinguinha ao MIS.
No entanto, é consenso entre os pesquisadores do tema que a chegada de Vargas ao poder altera substancialmente este panorama; o projeto de construção da identidade brasileira implementado pelo estadista, e alicerçado pelo mito das três raças que ganhava força com Gilberto Freyre e modernistas como Mário e Oswald de Andrade, alçou o samba à condição de símbolo da tal identidade nacional que era naquele momento forjada. Além disso, a profusão de músicos brancos que iam às casas das tias e aos morros do Estácio para ouvir o samba – muitos residentes da minha querida Vila Isabel, como Noel Rosa, Almirante, João de Barro e Francisco Alves – contribuiu para que este estilo musical tivesse cada vez mais a aceitação e o aval das elites. Hoje, e já há muitas décadas, ninguém estranha que o samba pouse nos olhos verdes de um Chico Buarque ou se reproduza na pele clara de uma Marisa Monte.
Agora vejam bem: o funk, em sua vertente carioca, ou seja, oriundo da mesma cidade, desenvolveu-se majoritariamente em comunidades pobres, e antes mesmo de estampar as páginas dos jornais já movimentava, nos anos 80, centenas de milhares de jovens, notadamente negros, nos diversos bailes espalhados pelos subúrbios do Rio de Janeiro.
Mais de meio século se passou, e é evidente que o contexto histórico, político e social foi alterado; não obstante, continuávamos – e continuamos – a viver a hipocrisia do racismo instituído que associa, na cabeça de muitos, funk, população negra e criminalidade. Na década de 90 o tom não foi diferente: quem vive na cidade – e mesmo alhures – tem vivo na memória o surto de arrastões que se alastrou pela cidade nos idos de 1993, 94, comumente atribuídos a “galeras funk” pelos jornalecos de merda que nos mantêm “informados”.
E quem não conhece alguém que defende a tese de que “funk não é música”? Pois bem: é bom lembrar que o samba, comparado aos outros estilos musicais que eram ouvidos no início do século, era considerado simplificado demais, quase sem base harmônica, muito mais calcado no caráter percussivo e rítmico, ou seja, um tom de crítica deveras similar àquele que ouvimos hoje em relação ao funk.
Entretanto, em que pesem todas as críticas e preconceitos que perduram até hoje em relação ao funk, é fato que, cada vez mais, as elites têm demonstrado interesse pelo “som de preto, de favelado”, como cantam Amilcka e Chocolate. Nas áreas mais nobres da cidade do Rio, não é difícil encontrar academias lotadas de brancos de classe média aprendendo coreografias de funk e danceterias com DJs que tocam estas músicas, assim como não é necessário pesquisar muito para encontrar, nas páginas dos tablóides cariocas, alguma “notícia” sobre fulana famosa da vez que “rebolou até o chão” em alguma boate de 50 reais a entrada.
Cético que sou, no entanto, duvido muito que o funk algum dia alcance o patamar que hoje cabe ao samba, mesmo se for criada um Liga das Escolas de Funk, ou se o Lula lançar uma versão do hino nacional em ritmo de funk, ou mesmo se o Chico Buarque regravar o Bonde do Tigrão – talvez a menos provável das três opções.
Quando do prenúncio do século XX, o samba era essencialmente executado e ouvido em uma área geográfica específica – a Cidade Nova, na época conhecida como Pequena África. As casas das “tias” baianas que habitavam esta área se transformavam em verdadeiras escolas musicais, onde negros ex-escravos e seus filhos praticavam uma curiosa mistura do lundu africano e do maxixe europeu, mistura essa que foi adquirindo estilo próprio até consolidar-se como samba.
Indissociável da cultura dos escravos recém libertos, o samba não raro era visto pelas autoridades como “a música de negros e vadios”, o que complicava a vida de qualquer um que perambulasse pela cidade com um violão debaixo do braço. Mesmo na casa das tias, em dias de festa, cabia ao samba apenas o espaço da cozinha e dos fundos, enquanto o choro, dotado de maior prestígio, ocupava a sala de visitas – conforme depoimento de Pixinguinha ao MIS.
No entanto, é consenso entre os pesquisadores do tema que a chegada de Vargas ao poder altera substancialmente este panorama; o projeto de construção da identidade brasileira implementado pelo estadista, e alicerçado pelo mito das três raças que ganhava força com Gilberto Freyre e modernistas como Mário e Oswald de Andrade, alçou o samba à condição de símbolo da tal identidade nacional que era naquele momento forjada. Além disso, a profusão de músicos brancos que iam às casas das tias e aos morros do Estácio para ouvir o samba – muitos residentes da minha querida Vila Isabel, como Noel Rosa, Almirante, João de Barro e Francisco Alves – contribuiu para que este estilo musical tivesse cada vez mais a aceitação e o aval das elites. Hoje, e já há muitas décadas, ninguém estranha que o samba pouse nos olhos verdes de um Chico Buarque ou se reproduza na pele clara de uma Marisa Monte.
Agora vejam bem: o funk, em sua vertente carioca, ou seja, oriundo da mesma cidade, desenvolveu-se majoritariamente em comunidades pobres, e antes mesmo de estampar as páginas dos jornais já movimentava, nos anos 80, centenas de milhares de jovens, notadamente negros, nos diversos bailes espalhados pelos subúrbios do Rio de Janeiro.
Mais de meio século se passou, e é evidente que o contexto histórico, político e social foi alterado; não obstante, continuávamos – e continuamos – a viver a hipocrisia do racismo instituído que associa, na cabeça de muitos, funk, população negra e criminalidade. Na década de 90 o tom não foi diferente: quem vive na cidade – e mesmo alhures – tem vivo na memória o surto de arrastões que se alastrou pela cidade nos idos de 1993, 94, comumente atribuídos a “galeras funk” pelos jornalecos de merda que nos mantêm “informados”.
E quem não conhece alguém que defende a tese de que “funk não é música”? Pois bem: é bom lembrar que o samba, comparado aos outros estilos musicais que eram ouvidos no início do século, era considerado simplificado demais, quase sem base harmônica, muito mais calcado no caráter percussivo e rítmico, ou seja, um tom de crítica deveras similar àquele que ouvimos hoje em relação ao funk.
Entretanto, em que pesem todas as críticas e preconceitos que perduram até hoje em relação ao funk, é fato que, cada vez mais, as elites têm demonstrado interesse pelo “som de preto, de favelado”, como cantam Amilcka e Chocolate. Nas áreas mais nobres da cidade do Rio, não é difícil encontrar academias lotadas de brancos de classe média aprendendo coreografias de funk e danceterias com DJs que tocam estas músicas, assim como não é necessário pesquisar muito para encontrar, nas páginas dos tablóides cariocas, alguma “notícia” sobre fulana famosa da vez que “rebolou até o chão” em alguma boate de 50 reais a entrada.
Cético que sou, no entanto, duvido muito que o funk algum dia alcance o patamar que hoje cabe ao samba, mesmo se for criada um Liga das Escolas de Funk, ou se o Lula lançar uma versão do hino nacional em ritmo de funk, ou mesmo se o Chico Buarque regravar o Bonde do Tigrão – talvez a menos provável das três opções.
Sobre o samba, leia Feitiço Decente, de Carlos Sandroni, Acertei no Milhar, de Claúdia Matos, e O Mistério do Samba, de Hermano Vianna;
Sobre o funk, leia O Mundo Funk Carioca, do mesmo Hermano (se você conseguir achar), Abalando os Anos 90, organizado pelo Micael Herschmann, e duvide de qualquer teoria que diga que o funk é um símbolo de integração social. Um dia escreverei aqui sobre isso.
10 comentários:
grande sacada!
Só para complementar, as similaridades acusatórias entre um e outro poderiam ser resumidas da seguinte forma:
1- pouco civilizado;
2- violência;
3- sexualidade;
4- temática marginal;
5- intelectualmente insuficiente.
e já não chega de motivos pra deixar essa batucada étnica de primitivos restrita aos guetos onde eles se encontram?
vocês me cansam com essas aliviadas de consciência
esse livro do Hermano Vianna é uma merda completa. aliás, todas essas 'antropologias' que se caracterizam por ser algo mais que uma reportagem ampliada, com palavras um pouco menos usuais. Vão me achar preconceituoso, mas nunca dei a menor importancia pra isso mesmo: pelo que percebo, há uma grande produção antropo-ilógica cá na cidade maravilhosa, uma ebulição de 'idéias' (na falta de vocábulo melhor) que primam por temas pertinentes, análises profundas e densidade teórica.
Ah se um dia eu chego a ter um cargo no CNPq...
ifcs e museu tão fudidos
Caro Marques, até entendo sua opinião em relação ao Mistério do Samba, que não vai muito além de uma reportagem - o que não faz do livro algo ruim de se ler, desde que se tenha em mente que se trata de jornalismo. Mas vc há de convir que o Mundo do Funk é um interessante trabalho etnográfico, e pioneiro. Infelizmente, depois desse livro muita merda vem sendo escrita sobre o tema.
perdão, mas tenho que concordar com o Sr. Marques. O livro citado foi uma dissertação de mestrado, logo é uma merda. Se fosse assim, Ruy Castro já teria umas 4 teses de doutorado e a Regina Casé seria a maior antropóloga do Brasil
Bem, em primeiro lugar, quero manifestar que o funk é uma merda completa, sobretudo esse funk que é produzido na cidade do Rio de Janeiro. Chega desses antropólogos e sociólogos com crise de consciência, vou te contar. Nossa música é muito mais do que isso que está aí.
Quando me lembro de Tom Jobim e ao mesmo tempo toca um funk no rádio, chego a sentir calafrios. Só falta agora defenderem também a pixação (na verdade, emporcalhamento) da cidade como uma manifestação cultural.
funk é muito mais legal do que o bêbado chato do tom jobim.
e o livro de funk do hermano vianna tb é uma bosta completa. reportagem detalhada. teoria, zero.
Recordo também que as cachorras rebolativas de hoje em dia são consideradas tão promíscuas quanto as mulatas de todos os tempos.
Chatubaaaaaaaaaa!
Postar um comentário