sexta-feira, janeiro 26, 2007

conto de um ponto só

Ontem à noite minha bonita, fiel companheira sobre quem hei de falar aqui muitas vezes, contava-me que havia terminado de ler o conto A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, do colombiano Gabriel García Márquez. Lembrei-me de imediato que o livro, cujo título é o mesmo do conto mencionado, possui duas outras histórias – Blacaman, o bom vendedor de milagres e A última viagem do navio fantasma – que são contadas em uma única frase, sem pontos ou parágrafos, por páginas a fio.

Segundo entrevista com o autor, estes contos serviram de embrião para o Outono do Patriarca, uma obra em formato cíclico que se estende por centenas de páginas em bloco, apoiada apenas em vírgulas e travessões e – novamente – sem parágrafos. O Outono foi lançado logo após Cem Anos de Solidão, que rendeu ao autor o prêmio nobel de literatura e criou em milhares de leitores uma expectativa sem precedentes acerca do seu próximo livro. Conforme conta o próprio Márquez na entrevista supracitada, o livro foi um fracasso comercial, com direito a leitores indignados pedindo dinheiro de volta às livrarias. Anos depois, entretanto, tornou-se seu livro mais estudado nas universidades.

Meu interesse aqui não repousa tanto no conteúdo mas sim na forma, uma vez que considero no mínimo impressionante que se consiga desenvolver um enredo sem a pausa para respirar com que nos agraciam os pontos; mas logo percebi que trata-se de um poderoso recurso estilístico, que prende o leitor na história, envolvendo-o de uma forma que julgo original. E assim sendo, resolvi arriscar-me, movido por um desafio em forma de exercício, a escrever uma historieta folhetinesca, de uma tacada só, utilizando qualquer tipo de acentuação e apenas um ponto – o final. Vamos a ela, e espero que, após a leitura, você também sinta motivação para criar seu próprio conto de um ponto só.


***

Ela caminhava a passos largos, com a urgência dos homens de negócios que colecionam compromissos inadiáveis; estava claro que se encontrava absorta em uma história inconclusa, recheada de maneirismos que se naturalizavam na monotonia da relação, e sabia que precisava de um ponto final para aquela relação – entretanto, por mais que procurasse, não achava este ponto final, e agora nutria o medo de ficar condenada a navegar eternamente em águas brandas, sem ter um porto por onde pudesse escapar ou ao menos uma tempestade que trouxesse ânimo e a impelisse a alterar o fluxo cotidiano dos acontecimentos: mensurava neste instante o peso do atrevimento de querer enxergar o óbvio, e como a tranqüilidade de outrora era fruto desta venda que faz com que o conservadorismo e o medo da mudança se sobrepujem à tal busca da felicidade, que tanto almejara quando menina e que agora escorria pelo ralo dos sonhos liquefeitos – mas talvez essa consciência recém adquirida pudesse muni-la de forças para tomar uma decisão, A decisão que iria jogá-la, não sem alguma violência, no campo das incertezas que arrancam o chão em que nos apoiamos e altera o ritmo compassado de nossas funções biológicas – e era exatamente disso que precisava, mas para fazê-lo faltava-lhe a coragem reservada àqueles que se deleitam com as adversidades, sentimento que não fora projetado para pessoas frágeis como ela e, talvez por tudo isso, andava absorta nesses pensamentos rumo ao local onde ele já a esperava, bastando olhá-lo uma única vez ao chegar para perceber que o olhar com que ele a olhava ela já não reconhecia, pois que também ele a olhava com outros olhos e trazia naquele brilho opaco, estranho a ela, a certeza de que já não cabia dizer uma vírgula que fosse, pois o ponto final que procurava sem sucesso agora via nitidamente desenhado naquele semblante, já despido do pudor monótono das paixões extintas, e sem saber exatamente como deveria se sentir naquele momento buscou, simplesmente, entender que apenas lia naqueles olhos já estranhos um certo reflexo daquilo que sentia, e que haviam ambos chegado de comum acordo ao mesmo ponto final, enfim.

4 comentários:

Diogo Lyra disse...

Intrigante, com certeza, essa idéia de elaborar textos complexos sem ponto outro que aqueles descomprometidos com o fim, como se a narrativa em questão simulasse a própria vida, isto é, ao menos a parte em que estamos vivos e na qual não se vê ponto final, com eternas reticências, ponto-e-vírgulas, dois pontos e travessões que constituem, ao fim e ao cabo, os ciclos intermináveis nos quais todo ser humano se vê, irredutivelmente, tragado durante os anos em que vive, até o dia de ver chegar seu derradeiro ponto final.

4rthur disse...

Zizas, tu pegou o espírito da coisa! A idéia é que os comentários desta postagem sejam construídos em cima de uma única frase, exatamente como vc fez!

Anônimo disse...

e o ponto de um conto pó?

Unknown disse...

Qual e a clímax da história a ultiúl viagem do navio fantasma