Minha querida amiga Dida fez a tradução de um texto de Einstein chamado "Por que Socialismo?", para ser publicado no jornal eletrônico que seus alunos (os dela, claro) estão criando na Cândido Mendes de Niterói. Com isto, Dida nos presenteou com a possibilidade de entrar em contato com algumas opiniões políticas do grande gênio da física, às quais não teríamos acesso devido ao nosso parco conhecimento de alemão (com algumas exceções, né Jana?).
Trata-se de um artigo escrito para o lançamento do primeiro volume da famosa revista de esquerda norte-americana
Monthly Review, saído em 1949. Quem tiver curiosidade de ler o texto na íntegra pode enviar um e-mail para
errata@oi.com.br solicitando-o. Abaixo, reproduzo alguns trechos deste ótimo texto para o deleite de vocês, queridos leitores.
Por que Socialismo?
Albert Einstein (maio de 1949)
(...) O homem é, a um só e mesmo tempo, um ser solitário e social. Enquanto ser solitário ele almeja proteger sua própria existência e aquela daqueles que são mais próximos a ele, para satisfazer seus desejos pessoais e para desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, ele busca ganhar o reconhecimento e o afeto de seus companheiros humanos, compartilhar seus prazeres, confortá-los em suas dores, e melhorar suas condições de vida. Apenas a existência dessas ambições variadas, e freqüentemente conflituosas, dá conta do caráter especial de um homem, e a sua combinação específica determina a extensão com que um indivíduo pode alcançar um equilíbrio interno e pode contribuir para o bem-estar da sociedade. É bem possível que a força relativa desses dois impulsos seja fixada principalmente pela herança. Mas a personalidade que finalmente emerge é largamente formada pelo ambiente no qual aconteceu a um homem encontrar-se durante seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade na qual ele cresceu, pela tradição dessa sociedade, e pela sua avaliação de tipos particulares de comportamento. O conceito abstrato de “sociedade” significa para o ser humano individual a soma total de suas relações diretas ou indiretas com seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo está apto a pensar, se empenhar e trabalhar por si mesmo; mas ele depende tanto da sociedade – em sua existência física, intelectual e emocional – que é impossível pensar nele ou compreendê-lo fora da moldura da sociedade. É a sociedade que provê o homem de comida, vestuário, lar, ferramentas de trabalho, linguagem, formas de pensamento, e a maior parte do conteúdo de pensamento; sua vida é tornada possível pelo trabalho e pelas realizações de vários milhões no passado e no presente, os quais estão escondidos por trás da pequena palavra “sociedade”.
(...) O homem adquire de nascimento, através da hereditariedade, uma constituição biológica que nós podemos considerar fixa e inalterável, incluindo os impulsos naturais que são característicos da espécie humana. Além disso, durante seu tempo de vida o homem adquire uma constituição cultural que ele adota da sociedade através da comunicação e de vários outros tipos de influência. É essa constituição cultural que, com o passar do tempo, está sujeita à mudança, e que determina numa grande extensão a relação entre o indivíduo e a sociedade. A moderna antropologia nos ensinou, através do método comparativo de investigação das assim chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir tremendamente dependendo dos padrões culturais e dos tipos de organização que predominam em sociedade. É por isso que aqueles que estão se empenhando em aprimorar a sorte do Homem podem aumentar suas esperanças: os seres humanos não estão condenados por sua constituição biológica a aniquilar uns aos outros ou a estar à mercê de um destino cruel auto infligido.
Se nós nos perguntarmos como a estrutura da sociedade e a atitude cultural do homem devem ser mudadas a fim de tornar a vida humana tão satisfatória quanto for possível, nós deveríamos estar constantemente conscientes do fato de que existem certas condições que são impossíveis de modificar. Como mencionado antes, a natureza biológica do homem não está, para todos os fins práticos, sujeita à mudança. Mais ainda, os desenvolvimentos tecnológicos e demográficos dos últimos poucos séculos criaram condições que vieram para ficar. Em populações relativamente munidas dos bens que são indispensáveis à continuação de sua existência, uma extrema divisão do trabalho e um aparato produtivo altamente centralizados são absolutamente necessários. Já foi para sempre o tempo – o qual, olhando para trás, parece tão idílico – em que indivíduos ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes. É apenas um leve exagero dizer que a humanidade constitui já hoje uma comunidade planetária de produção e consumo.
Agora alcancei o ponto em que eu posso brevemente indicar o que constitui para mim a essência da crise do nosso tempo. Ela concerne à relação entre indivíduo e sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência em relação à sociedade. Mas ele não experimenta essa dependência como um patrimônio positivo, como um laço orgânico ou como uma força protetora, mas antes como uma ameaça aos seus direitos naturais, ou mesmo à sua existência econômica. Mais ainda, sua posição em sociedade é tal que os impulsos egoístas de sua constituição estão sendo constantemente acentuados, enquanto seus impulsos sociais, que são fracos por natureza, deterioram progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, estão sofrendo esse processo de deterioração. Prisioneiros não conscientes de seu próprio egoísmo, eles se sentem inseguros, solitários e privados do ingênuo, simples e não sofisticado aproveitamento da vida. O homem só pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como ela é, através de sua devoção à sociedade.
A anarquia econômica da sociedade capitalista tal como existe hoje é, em minha opinião, a real origem do mal. Vemos antes de nós uma enorme comunidade de produtores, cujos membros estão almejando incessantemente tirar uns dos outros os frutos do seu trabalho coletivo – não pela força, mas no geral em cumprimento fiel das leis legalmente estabelecidas. A esse respeito, é importante nos darmos conta de que os meios de produção – que correspondem, por assim dizer, à inteira capacidade produtiva que é necessária para a produção de bens de consumo, tanto quanto de bens de capital – podem ser legalmente, e o são em sua maior parte, a propriedade privada de indivíduos.
(...) O capital privado tende a se tornar concentrado em poucas mãos, em parte por causa da competição entre os capitalistas, e em parte pelo desenvolvimento tecnológico, e a crescente divisão do trabalho encoraja a formação de grandes unidades de produção às expensas das pequenas. O resultado desse desenvolvimento é uma oligarquia do capital privado, cujo enorme poder não pode ser efetivamente controlado mesmo por uma sociedade política democraticamente organizada. Isso é verdade visto que os membros do corpo legislativo são selecionados pelos partidos políticos, largamente financiados ou de alguma forma influenciados pelos capitalistas privados, que, para todos os fins, separam o eleitorado do governo eleito. A conseqüência é que os representantes do povo não protegem os interesses dos setores desprivilegiados da população. Mais do que isso, sob tais condições os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação). Portanto, seria extremamente difícil para o cidadão individual, e mesmo impossível na maioria dos casos, chegar a conclusões objetivas e fazer um uso inteligente de seus direitos políticos.
(...) A produção é orientada pelo lucro, não pelo uso. Não há previsão de que todos aqueles aptos e desejosos de trabalho estejam em posição de encontrar emprego; um “exército de desempregados” existe quase sempre. O trabalhador está constantemente com medo de perder seu emprego. Desde que desempregados e mal pagos, os trabalhadores não constituem um mercado lucrativo, a produção de bens de consumo é restrita, e um grande sofrimento é a conseqüência. O progresso tecnológico resulta freqüentemente em mais desemprego do que em um alívio do fardo do trabalho para todos. A motivação do lucro, em conjunção com a competição entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade na acumulação e utilização do capital, o que leva a depressões cada vez mais severas. A competição ilimitada leva a um enorme desperdício de trabalho e ao enfraquecimento da consciência dos indivíduos, a qual mencionei acima.
Eu considero esse enfraquecimento dos indivíduos o pior mal do capitalismo. Nosso sistema educacional como um todo sofre desse mal. Uma atitude competitiva é inculcada no estudante, que é treinado para adorar o sucesso aquisitivo como preparação para a sua futura carreira.
Estou convencido de que há apenas um caminho para eliminar esses graves males, nomeadamente através do estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada de um sistema educacional que seria orientado para fins sociais. Numa tal economia, os meios de produção são possuídos pela sociedade ela mesma, e são utilizados de uma maneira planejada. Uma economia planejada que ajustasse a produção às necessidades da comunidade distribuiria o trabalho a ser feito entre todos aqueles aptos a trabalhar, e garantiria uma vida decente a cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, somada à promoção de suas habilidades inatas, procuraria desenvolver nele um senso de responsabilidade para com seus companheiros homens, em lugar da glorificação do poder e do sucesso em nossa sociedade presente.
Contudo, é necessário recordar que uma economia planejada ainda não é o socialismo. Uma economia planejada como tal deve ser acompanhada pela desescravização do indivíduo. O alcance do socialismo requer a solução de alguns problemas sócio-políticos extremamente difíceis: como é possível, em vista de uma abrangente centralização do poder econômico-político, prevenir que a burocracia torne-se toda poderosa e onipresente? Como os direitos do indivíduo podem ser protegidos, e com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia ser assegurado?
Claridade sobre os fins e problemas do socialismo é da maior significância em nossa idade de transição. Dado que nas presentes circunstâncias a discussão livre e desimpedida desses problemas tornou-se um poderoso tabu, eu considero que a fundação dessa revista constitua um importante serviço público.